
A diva que encontra sua força não no grito, mas no silêncio. Uma conversa sobre a intensidade contida, a mística da era do rádio e a arte de ser persona.
Ivana Wonder é uma persona, uma “entidade cênica” que nasce de um ritual. Invocada pelo artista Victor Ivanon, ela emerge do espelho para o palco, carregando a herança das grandes divas da era de ouro do rádio brasileiro. Mas sua força não está na performance espalhafatosa, e sim na intensidade contida, no silêncio entre as notas e na teatralidade de um simples gesto. Seu trabalho é um ato de “garimpo afetivo”, resgatando pérolas musicais do passado para ressignificá-las no presente com uma perspectiva queer, provando que “sentimentos não envelhecem”. Nesta conversa, a artista fala sobre a transmutação entre criador e criatura e a busca pela mística na música. Para nos guiar por seu universo, ela compartilha a “playlist do camarim da diva”, uma seleção de canções que a ajudam a construir o ritual de invocação de Ivana Wonder. Escute agora!
Ivana Wonder é descrita como uma “entidade cênica” que nasce do olhar do artista Victor Ivanon. Como funciona, para você, essa relação entre o criador e a criatura? A Ivana é um personagem que você interpreta ou uma faceta de você que ganha vida no palco?
Ivana Wonder é uma persona. São tantos anos manifestando que, de certo modo, ela passou a me habitar. É como uma força que desperta quando precisa acontecer. Depois de mais de dez anos, os caminhos se confundem — o criador e a criatura já não se separam tão facilmente. A transmutação se tornou natural, mas continua cercada de rituais. A maquiagem, por exemplo, é um rito em si: cada traço desenhado no rosto é também um gesto de invocação, um preparo para que Ivana emerja inteira. E, ao longo desse tempo, fomos aprendendo a ocupar o mesmo espaço, cada uma no seu protagonismo. Como duas presenças que se encontram diante do espelho: distintas, mas inseparáveis.
Seu trabalho artístico tem uma forte conexão com a era de ouro do rádio brasileiro, resgatando a herança emocional das grandes divas. O que, nessa época da nossa música, te inspira tanto? E qual é a importância de trazer essa dramaticidade para a cultura e a pista de dança de hoje?
O que me fascina na era de ouro do rádio — principalmente no Brasil — é essa teatralidade que transbordava de tudo. Um drama constante, quase caricato aos olhos de hoje, mas carregado de magia e mistério. Quando eu era criança, me diziam que eu tinha “voz de rádio”. Eu não entendia, mas fui descobrindo: havia mesmo um jeito de cantar, uma entonação, uma força que evocava aquelas cantoras antigas. E havia algo místico nisso — não se tratava de divas inalcançáveis, mas de um mistério que envolvia arte, música, palco, presença. Tudo isso sempre me encantou profundamente.
A estética daquela época — palcos, figurinos, balés, exageros — se mistura com minha própria maneira de performar. Hoje, eu trago essa dramaticidade para o presente: para o palco, para a pista de dança. É um resgate de mística e emoção, um convite para sentir, para viver um momento catártico de sentimentos. Alegria, dor, dança, choro — tudo atravessa o corpo e chega à plateia. Minha presença no palco não é espalhafatosa. Cada olhar, cada gesto das mãos, cada atitude do corpo carrega intensidade. Não preciso percorrer todo o palco, não preciso de grandes espacates. Minha força está no silêncio, na intensidade contida, naquilo que é sentido mais do que visto. É a Ivana Wonder surgindo entre o público, tornando visível o invisível, transformando cada nota em emoção pura
Seu trabalho é um mergulho profundo no passado para resgatar pérolas musicais. Como você faz seu garimpo e, como curadora, decide quais canções do passado ainda têm o poder de conversar com as nossas inquietações atuais?
Minha pesquisa musical vem de muitos lugares, mas começa pelo meu território pessoal, familiar. Cresci em uma cidade do interior nos anos 90, introduzido à música pelas minhas avós e por pessoas próximas da família. Ouvi de tudo: música mainstream, caipira, boleros, músicas antigas. Também cantei por muito tempo no coral católico da minha cidade, então meu repertório carrega um pouco de música clássica, cantos em latim… tudo sempre muito dramático.
Com o passar dos anos, desenvolvi um ouvido curioso. Na adolescência, ouvia muito rádio e navegava em fóruns de música, sempre procurando sonoridades diferentes. Às vezes mergulho em músicas do Oriente Médio, às vezes encontro uma cantora ou um cantor que me cativa, e então vou garimpando mais e mais sobre essa pessoa. Outro jeito de descobrir essas pérolas é indo a sebos: zapeio discos até que algo me chame a atenção — seja a capa, um detalhe, uma sonoridade — e compro. Assim encontrei, por exemplo, um disco de uma cantora chinesa de 1950 que é absolutamente lindo. Meu garimpo musical é guiado por curiosidade, mas também pela estética sonora e visual do artista: como soa, como se veste, como se apresenta. Por exemplo, descobri a Mina, uma cantora italiana, por acaso no YouTube, e passei anos pesquisando e absorvendo seu trabalho.
Quanto à curadoria das canções, é um processo íntimo e individual. Canto aquilo que faz sentido para mim, que ressoa com o que vivi e com minhas crenças. Mas também gosto de ressignificar: músicas antigas podem ganhar novos sentidos. Letras que falavam de sofrência ou normas sociais de décadas atrás podem, hoje, ser cantadas sob uma perspectiva queer, por exemplo, assumindo novos significados sem perder a força emocional. No fim, o que me atrai é o sentimento. Sentimentos não envelhecem; eles permanecem vivos. E é isso que faz uma canção antiga ainda poderosa hoje: ela ainda nos toca, nos move, nos transforma.
Seu trabalho é sobre uma constante transformação entre emoção, imagem e voz. Como funciona esse processo na prática? A criação de um look ou de uma maquiagem pode ser o ponto de partida que define como uma canção será interpretada?
Sim, acho que tudo pode ser um ponto de partida. Por exemplo, Melancholic Blue, meu primeiro single, surgiu de umas fotos que fiz com meu marido no começo do nosso namoro. Durante a pandemia, a gente fez essas fotos e precisava de um nome para o ensaio. Aí veio Melancholic Blue, e dali nasceu a ideia de transformar aquilo em música, porque tudo estava tão bonito, tão carregado de sentimento. A escolha estética — maquiagem, figurino — também é parte desse processo. Tinha uma amiga que dizia que meu rosto, minha maquiagem, já transmitiam um sentimento por si só. Podia ser um côncavo triste, melancólico ou mais feroz, como é para o Vermelho Wonder, mais anos 80, mais dramático. Então, sim: o ponto de partida pode ser qualquer coisa — uma roupa, uma cor, uma foto, uma lembrança. É um processo fluido, descompromissado, mas que funciona.
Você transita entre o show solo, mais teatral, e o duo eletrônico Vermelho Wonder, focado na pista. O que cada um desses universos te permite expressar? A Ivana do palco e a Ivana da pista de dança são a mesma, ou são personas diferentes?
Eu gosto muito de ter esses dois projetos. Sempre fui alguém que não gosta de se sentir presa a um único lugar, obrigada a estar sempre ali. Ter esses dois universos foi uma maneira de encontrar equilíbrio, e acho que consegui. O Vermelho Wonder me permite explorar outra sonoridade, com outro tipo de apresentação, outro público. Apesar de ser focado em festas e pistas, há uma teatralidade própria, que foi se desenvolvendo com o tempo, entre música eletrônica e performance. Já o projeto acústico é mais íntimo, mais pessoal, mais rasgado, mais emotivo — ainda teatral, mas com uma roupagem diferente.
A Ivana é a mesma, mas com intenções distintas. É como alguém que gosta de ouvir música clássica, mas também de música eletrônica: a troca de roupa, a maquiagem, a energia levam-na para lugares diferentes. Ao longo do tempo, fui estudando essas bifurcações estéticas e aprendendo a explorar o risco, a experimentação. Um exemplo: há dois anos, resolvi usar peruca no Vermelho Wonder — e isso virou uma marca da Ivana nesse projeto. Já na versão acústica, Ivana permanece careca. São nuances que eu vou explorando e reinventando com o passar do tempo, e isso me mantém em movimento.
Fotos: Gabriela Schmidt
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Vermelho Wonder (Instagram)
Gustavo Koch MGMT