
Para a atriz e autora, o riso é um abraço na alma, a comédia é um remédio e a arte, uma missão de oferecer reflexão em tempos de decadência.
Grace Gianoukas é uma força motriz do teatro e da comédia no Brasil. Seja como a atriz que investiga a alma de um ícone como Dercy Gonçalves, a autora que transforma indignação em personagens, ou a diretora que revela o potencial de novos talentos, seu trabalho é guiado por um profundo senso de coletividade. Ela acredita que o conhecimento não é moeda e precisa ser dividido, e que a comédia aprofundada, diferente do viral descartável, tem o poder de marcar e transformar. Para ela, fazer rir é uma “missão”, um ato quase terapêutico de oferecer um “remédio” para uma sociedade que enxerga como adoecida. Nesta conversa, a artista fala sobre processo criativo, legado e a responsabilidade do humor. Para entrar no clima, ela compartilha sua “Playlist de Camarim”, uma seleção de vozes potentes, de Maria Callas e Edith Piaf a David Bowie e Chico Science, que a ajudam a se preparar para o palco.
Grace, você é uma mestre na criação de personagens. Seu processo criativo é o mesmo para dar vida a uma figura que nasce do zero e para interpretar uma pessoa que já existe, com uma história real? De onde vem o ponto de partida em cada caso?
Bom, o meu processo criativo se dá a partir de muitas fontes. Eu vou separar isso em três ambientes: as personagens que eu crio com os textos que eu escrevo; as personagens que foram criadas por outros autores e que eu sou chamada para interpretar como atriz; e, no caso do que estou fazendo agora no espetáculo Nasci pra ser Dercy, uma personagem que todo mundo já viu, que não é uma personagem, é uma referência a um ícone brasileiro. São três processos bem diferentes.
As personagens que eu crio e escrevo geralmente partem da minha observação do mundo e da minha indignação com alguma coisa. Coisas que me irritam, coisas que me encantam, de alguma forma isso tem a ver comigo. A partir do momento em que observo o que está me incomodando, eu pergunto: “Por que me incomoda? O que eu faria diferente?” E aí começo a filosofar e acabo criando uma personagem para dar voz e palco para essas reflexões.
Quando alguém me dá um texto para encenar, eu sou basicamente um parafuso a serviço do diretor, para me aparafusar dentro do sistema que é o espetáculo. Eu acabo emprestando minha vivência real, física e emocional, para essa personagem. E, claro, tudo isso é lapidado pelo diretor.
No caso de Dercy Gonçalves, é uma responsabilidade enorme. Eu tomei muito cuidado para não ser uma caricatura, porque não sou uma imitadora. Então, fui buscar a alma, observar quem era a Dercy em momentos em que ela não estava armada da persona Dercy Gonçalves. Assisti a muitas entrevistas, observei a maneira como ela mexia as mãos, como o olhar dela mudava em relação aos assuntos. Essa foi a minha busca, orientada pela pesquisa profunda do autor e diretor Kiko Rieser.
Além de uma grande atriz, você sempre teve um papel de fomentadora cultural, criando espaços e revelando talentos. De onde vem essa sua vocação para o coletivo e para abrir portas para a próxima geração de artistas?
Olha, eu venho de uma família grande. Nós somos seis irmãos, então sempre tivemos dentro de casa um espírito coletivo, um apoia o outro, um ajuda o outro. Acho que isso vem da minha educação. E eu acho que conhecimento não é moeda, tem que ser coletivo, porque para uma sociedade prosperar, ela precisa dividir o conhecimento. Não adianta você escalar a montanha e estar lá sozinho, sem ter com quem dividir sua experiência e aquela vista maravilhosa.
Como diretora, gosto muito de olhar nos atores e ver potenciais que eles têm e dos quais não se deram conta ainda. Sou sempre pelo lado do positivo. Eu acredito numa sociedade igualitária. Quero oferecer e dividir o que eu sei e fazer disso uma oportunidade para todos. Esse é o mundo em que eu gostaria de viver e tento fomentá-lo ao meu redor.
O humor hoje é muito pautado por vídeos curtos e virais. Como você, que vem de uma escola do teatro, onde a comédia tem outro tempo e profundidade, enxerga essa nova linguagem?
Olha, eu acho que os tempos são esses. São tempos de rapidez, em que está todo mundo meio adoecido. As pessoas não querem aprofundar muito nenhum assunto. É uma civilização em colapso, em decadência, a partir do momento em que o conhecimento que temos não serve a todos, mas está a serviço de um poder que manipula o comportamento de massa. Como tudo, a gente precisa respirar e tentar ter um distanciamento crítico.
Em relação aos esquetes de humor rápidos que existem nas redes, acho que eles cumprem sua função de entreter. Tem mais do mesmo, mais do mesmo. De vez em quando, cruzo com alguma coisa que é bem legal, genial na sacada. Mas, ó, tem que peneirar. Sou chata para rir. Como diz Goethe, “o caráter de uma pessoa se mede pelas coisas que ela acha engraçadas”. Eu acho que a gente tem uma dificuldade hoje de consumir coisas mais densas, porque somos uma sociedade muito adoecida. A comediografia construída de uma forma aprofundada dá uma satisfação e causa uma transformação, o que não acontece com vídeos rápidos e descartáveis. Veja a obra do Nelson Rodrigues, que é profundamente dramática, atemporal e muito engraçada. Sou uma consumidora de coisas aprofundadas, não interessa se dramáticas ou cômicas.
A música e o ritmo são fundamentais na comédia. Como o som te ajuda a encontrar o momento certo de uma piada ou a compor a trilha sonora interna de uma personagem?
A música é fundamental na minha concepção de mundo, na minha formação. O conhecimento musical que eu tive a oportunidade de alcançar me recheia de ferramentas para construir cenas, sentimentos. Muitas vezes eu digo que, sei lá, Rita Lee, Tim Maia, Caetano, os Novos Baianos e o rock and roll têm muito mais importância na minha construção do que Shakespeare.
Sou a última de 6 irmãos, meu pai nasceu em 1915 e minha mãe em 1920, então eu tive contato com músicas de várias gerações , desde os bolachões de 45 rotações com músicas clássicas, grandes orquestras, músicas do cinema, Pixinguinha, Francisco Alves, Dalva de Oliveira, Carmem Miranda, ouviamos rádio El Mundo de Buenos Aires, BBC de Londres, música italiana, francesa, Beatles, Jovem Guarda e muito rock and roll dos anos 70 e pop que meus irmãos ouviam. Tudo isso esteve muito presente na minha formação. E a música continua sendo fundamental. No meu projeto Terça Insana, a gente criava um show novo por semana, com novos roteiros, trilhas e figurinos. O que eu pude mergulhar em pesquisa musical foi incrível. Resgatamos coisas muito legais, desde bobagens como “Eu Quero Um Mocotó” até Maria Callas e Rage Against the Machine. Tudo é possível, e eu adoro ter a oportunidade de fazer pesquisa musical.
Seu trabalho fez e faz o Brasil rir. Para você, qual é o poder da gargalhada? Em um mundo tantas vezes tão pesado, qual é a principal sensação ou reflexão que você espera que o seu humor deixe no público?
Olha, eu acho que o meu trabalho oferece essa possibilidade do rir, mas sempre um rir na base do refletir. Como autora e criadora de comédia, acredito que, como todos nós sabemos, o riso é um abraço na alma, um conforto, um alívio cômico nessa nossa civilização tão decadente. O que eu faço é quase um remédio para a sociedade. É um boldo para quem está mal de estômago, um chá de camomila para quem está nervoso.
Se eu recebi essa dádiva de fazer graça, preciso oferecer, dividir. É uma missão. A minha função como cidadã é oferecer reflexão com gargalhadas, através da comédia. Eu não posso mudar o mundo inteiro, mas às vezes posso dar um abraço em quem está por perto de mim, através do meu trabalho.
Claro que, depois de 43 anos de profissão, estou num momento em que escolho muito bem o que vou fazer, de forma que eu não entregue a minha vida junto com os trabalhos. Durante anos, carreguei um peso muito grande. Hoje, quero coisas de mais conforto físico e também um conforto financeiro. Estou com 61 anos, não vou me aposentar. Vou trabalhar até meus últimos dias para poder sobreviver. Eu coleciono alguns sucessos e muitos fracassos. E por isso que estou inteira aqui, sabendo o que é a vida. Hoje eu preciso pensar em ter alguma coisa que banque a minha velhice, para que eu possa envelhecer com mais dignidade.
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Terça Insana (YouTube)