
Em um mercado que só valoriza o lucro rápido, o curador do Novas Frequências defende os “agentes de risco” e a música que insiste em inventar outras formas de ouvir o mundo.
Chico Dub é o curador que, há 15 anos, se dedica a uma tarefa quase impossível no Brasil: criar e sustentar um espaço para a música experimental. Fundador do festival Novas Frequências, ele entende que “curador” vem de “cuidar”. Seu trabalho é uma forma de zelar por um ecossistema frágil, defendendo as propostas artísticas que nascem nas bordas, que arriscam e que desafiam o nosso modo de escuta. Em um cenário cultural pós-pandêmico dominado por investidores em busca de lucro fácil, sua luta se torna ainda mais urgente. Nesta conversa, ele fala sobre garimpo musical, a precariedade do mercado e o futuro da invenção. Para os que desejam iniciar essa jornada, ele preparou uma “playlist-portal”, com faixas que servem como porta de entrada para o fascinante universo dos sons experimentais. Dê o play!
Chico, seu trabalho com o Novas Frequências é um ato de coragem: o de apresentar uma música muitas vezes difícil ou não comercial para o público. O que te move a defender e a criar espaço para essa arte que exige mais do ouvinte? Qual é a importância de desafiar os ouvidos?
Sem medo de soar piegas, o que me move é a paixão por esse universo. Aliás, gosto tanto dele que me apego também à sua fragilidade: um campo tão vulnerável, sempre à beira de desaparecer. Há pouca grana, pouco investimento, muitos desistem no caminho. Se já é difícil sobreviver de música independente no Brasil, imagine numa camada (pelo menos) 200% mais “indie”, que é a música experimental. Por isso sinto que existe também uma tarefa de cuidar desse ecossistema — mantê-lo respirando, pulsando. Não à toa, “curador” vem de cuidar. É assim que entendo meu papel: cuidar das propostas que nascem nas bordas, que arriscam, que inventam outras formas de ouvir e de estar no mundo. Propostas que carregam a potência de regenerar, de surpreender, de manter a arte viva quando tudo ao redor insiste em normalizá-la.
Sobre a segunda parte da pergunta, a ideia de desafiar os ouvidos, lembro de uma entrevista com o artista japonês de noise Merzbow. Perguntaram a ele o que era “noise”, e sua resposta foi curta e genial: “Madonna”!
O termo “música experimental” é muito amplo. Para você, que vive e respira isso, o que define a música experimental hoje? É uma questão de usar novas tecnologias, de quebrar estruturas musicais tradicionais, ou um estado de espírito de constante busca?
Muita gente prefere restringir a música experimental a um nicho fechado, quando na verdade ela é, por essência, um campo beeeeem aberto. “Experimental”, na verdade, é mais um termo-guarda-chuva, onde cabem processos, riscos e tentativas de criar novas linguagens. Hoje, no Brasil, estamos vivendo um momento para lá de fértil, justamente porque essas técnicas experimentais vêm se colidindo com matrizes locais, atravessando práticas, tradições e imaginários que nos são próprios. Em vez de mirar apenas o hemisfério norte como horizonte, muitos artistas têm voltado o ouvido para cá, para o nosso chão, o nosso corpo, o nosso umbigo. Dessa fricção têm surgido formas novas e híbridas, cheias de energia e frescor.
A pasteurização do gosto pelos algoritmos é uma grande inquietação. Seu trabalho é a antítese disso. Na sua visão, os algoritmos são o grande inimigo da descoberta musical genuína, ou eles podem, de alguma forma, ser usados como uma ferramenta para encontrar o inesperado?
Eu não demonizo a tecnologia, de verdade. Gosto de streaming (aliás, gosto bastante, rs), curto IA, curto algoritmos. O que sinto que falta, no geral, é vontade de combinar essas ofertas todas. Tipo: ter lojas de discos físicas para garimpar, ir a festivais sem saber quem está tocando, e também passar umas horas deixando as plataformas rodarem suas rádios, te apresentando aquele dub techno alemão ou aquela psicodelia turca que você nem sabia que existia. Misturar tudo isso não faz mal a ninguém; pelo contrário, amplia a escuta.
Como funciona o seu garimpo na prática? Você passa horas no Bandcamp e no SoundCloud, recebe material de artistas do mundo todo, lê publicações especializadas? Qual é o seu método para construir o line-up de um festival como o Novas Frequências?
Meu garimpo como fã de música é bem por aí mesmo, exatamente como você descreveu. E, claro, ir a shows de música ao vivo. Isso para mim é fundamental. Já no Novas Frequências a coisa muda bastante de figura. Montar um line-up de festival internacional com poucos recursos (ou nenhum, como agora em 2025 – e logo no nosso aniversário de 15 anos, socorro!) é tarefa de maluco. A ideia, no fim, é tentar combinar um pouco de tudo, montar um quebra-cabeça diverso que caiba em diferentes formatos: casas de show, teatros, galpões, galerias, ocupações em espaços públicos, a rua… Ao mesmo tempo, é preciso equilibrar apostas e surpresas com nomes um pouco mais conhecidos do público fiel, artistas de países onde existe apoio internacional, propostas multilinguagem, projetos comissionados, residências artísticas e, por que не, até mesmo um pouco de sorte. Os anos de trajetória ajudam muito: tem sempre artista incrível escrevendo para dizer que vai passar pelo Brasil ou pela América do Sul no fim do ano, o que abre portas inesperadas.
Depois de tantos anos educando o público e expandindo os limites do que se entende por música, o que você espera para o futuro da escuta no Brasil? Você sente que estamos nos tornando ouvintes mais curiosos e abertos, ou a batalha pela atenção está cada vez mais difícil?
Eu estou, na verdade, morrendo de medo do futuro, sabe? Não tanto pela curiosidade e abertura do público – que existe, sim – mas pela batalha por investimentos. O mercado ainda não se recuperou da pandemia. Escrevi sobre isso num artigo que a Billboard me encomendou: com a retomada dos encontros presenciais, o mercado de shows e festivais virou vitrine de oportunidade fácil. De repente, surgiram investidores de todos os cantos — gente sem qualquer vínculo com a arte — entrando no jogo cultural como quem especula em bolsa: não pela invenção, mas pelo lucro rápido. Nesse movimento, o espaço para o risco e para o experimental foi sendo esmagado pela régua dos números. Hoje, só o que cresce em escala desmedida parece ter importância; tudo o que respira em menor intensidade — festivais de nicho, cenas independentes — passa a ser tratado como se não tivesse relevância alguma.
O Novas Frequências, como falei antes, está sem patrocínio. O festival CHIII aconteceu sem recursos significativos, só com apoios. O mesmo vale para o Index, do pessoal do Leviatã. São iniciativas fundamentais, mas que sobrevivem quase no improviso. E aí me pergunto: será que não existe nenhuma marca no Brasil disposta a trabalhar com inovação na música? Ou essa turma só gosta de encher a boca para falar de “inovação” quando vai ao SXSW? Será que não é hora de criar políticas públicas que protejam os agentes de risco, aqueles que realmente sustentam a invenção e o fomento de novas cenas?
Fotos: Maurício Valladares
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