Bob Wolfenson

Para o mestre do retrato, a fotografia é superfície, a inspiração é Caetano Veloso e a imagem perfeita nasce do descontrole provocado no estúdio.

Bob Wolfenson é um dos nomes que definem a fotografia brasileira, mas ele é o primeiro a desmontar os mitos que cercam sua própria arte. Para ele, um bom retrato não revela a alma, mas captura a “fricção dos desejos” de um encontro único e imponderável. Ele não busca a verdade, mas provoca o descontrole no estúdio, permitindo que a imagem se forme quase por acaso. Em uma era de imagens infinitas, ele questiona a própria noção de uma “fotografia bem construída” e defende que o que sustenta uma imagem não é só a técnica, mas a sua união com uma forte subjetividade. Nesta conversa, ele fala sobre a influência de Caetano Veloso em seu olhar, a natureza da atemporalidade e o que torna uma foto inesquecível. E, como se fosse mais um retrato, mas em som, ele revela a “Playlist do Estúdio” em um dia de ensaio ideal com músicas que criam a atmosfera de sua fotografia. Ouça agora!

Você é um dos maiores retratistas do Brasil. Para você, o que define um bom retrato? É a técnica, a captura de um momento de vulnerabilidade, ou a criação de uma terceira coisa que nasce do encontro entre o fotógrafo e o fotografado?
O retrato é, antes de tudo, um encontro, e eu procuro obedecer à natureza desse encontro. Há o que é constante, a câmera, a luz, o set fotográfico. O resto é imponderável e resulta da interação, ou da não interação, entre quem está diante de mim e eu. É na fricção dos desejos que pairam sobre o set que acontecem as imagens. Eu, de fato, nunca sei quando obterei um bom retrato. O grande retratista americano Richard Avedon dizia que um retrato é superfície, e que, se você raspar a superfície de uma imagem, vai encontrar outra superfície. Ele é uma fotografia daquele momento, sob tais condições; em outro dia, seria outro. Portanto, ambos rejeitamos a ideia de que o retrato retrata ou revela a alma do sujeito. Essa é uma ideia muito difundida, talvez para conferir ao resultado uma aura de profundidade e uma seriedade maior do que se pode obter. Enfim, não entendo muito por que algum fotógrafo gostaria de revelar a alma de alguém. Há algo de insondável nesse processo, e é bom que continue assim.

Seu olhar é famoso por despir o sujeito, não apenas o corpo. Como você constrói a intimidade e a confiança necessárias para que as pessoas se revelem de verdade para a sua câmera? Qual é o segredo para dirigir o olhar de alguém?
Confiança não se pede, se constrói. Não tenho um método fixo, mas procuro criar um ambiente em que a pessoa possa simplesmente estar, sem sentir que precisa “ficar bem na foto”. Não estou em busca de uma suposta verdade nem de descontração, e sim do resultado que pode surgir daquele momento específico. A pessoa pode estar interagindo comigo, como pode não estar, e ambas as situações podem gerar imagens interessantes. Um retrato em condições de estúdio é, em princípio, uma situação de controle absoluto. Eu, de certa forma, provoco o descontrole, sugerindo gestos, movimentos, saindo da luz que eu mesmo montei. Nesse fluxo, sem ver muito bem o que acontece, entro numa espécie de estado de entrega, onde a imagem se forma sem que eu force. Dirigir o olhar, para mim, não é mandar ou enquadrar, é criar condições para que ele apareça como consequência desse jogo de aproximação e recuo.

Vivemos em uma era de “imagem infinita”, com uma produção e um consumo de fotos nunca antes vistos, especialmente nas redes sociais. Como você enxerga esse cenário? A abundância de imagens banais diminui o poder de uma fotografia bem construída ou, ao contrário, a torna ainda mais rara e necessária?
Nunca houve tantas fotos ruins como as fotos ruins de hoje. É claro que sempre houve fotos ruins, mas agora elas circulam numa escala inédita. Por outro lado, o acesso a ser fotógrafo, ou simplesmente a fazer fotografias, foi franqueado a muita gente. Isso possibilitou que pessoas que talvez não pudessem antes, por depender de equipamentos caros ou de um conhecimento técnico mais específico, passassem a produzir imagens. Ainda assim, a maior parte se perde antes mesmo de ser vista. Eu sou um pouco contra essa ideia de “imagem bem construída”, como se houvesse um padrão que garantisse qualidade. Para mim, a imagem tem que fazer sentido para quem vê sentido. Ela precisa evocar, emocionar, tocar de alguma forma quem a olha. Lembro de uma formatura da minha filha no ICP, em Nova York, em que o paraninfo perguntou à plateia: quem falava inglês? Todos levantaram a mão. Quem escrevia inglês? Todos levantaram a mão. Quem era escritor? Um ou dois levantaram a mão. O paralelo que ele fez foi claro, para ser fotógrafo, você precisa das mesmas coisas que um escritor precisa, ideias, estilo, um pacto com a audiência, técnica. No meio do excesso, não é a suposta construção que sustenta uma fotografia, mas a singularidade de quem a faz e a capacidade dela de alcançar quem está do outro lado.

A fotografia, assim como a música, trabalha com ritmo, silêncio e composição. Que papel a música tem no seu processo criativo? Você usa o som para criar o clima em um ensaio, ou sua inspiração visual vem de outros lugares?
A música sempre esteve presente na minha vida, mas nem sempre está fisicamente presente quando fotografo. Às vezes ela ajuda a criar atmosfera, outras vezes o silêncio é mais eficaz. Música e fotografia têm muito em comum, ritmo, pausa, composição, harmonia, dissonância. Eu posso estar fotografando e lembrar de uma canção, não porque ela descreve a cena, mas porque evoca um estado de espírito que me conduz. Quando me perguntam qual é a minha inspiração, eu sempre buscava citar algum fotógrafo. E, apesar de eu ter muitos que me inspiraram, até porque transito por muitas disciplinas dentro da fotografia, percebi que a pessoa que mais me influenciou é um músico, Caetano Veloso. Não apenas pela música, mas pela maneira como ele olha o mundo, pela sua condição de visionário que antecipou movimentos, ideias e esteve tantas vezes na vanguarda. Acho que a minha grande influência para a vida, para a música, para a poesia, para o entendimento do mundo e para a fruição é, sem dúvida nenhuma, o maior gênio brasileiro dessa área, Caetano Veloso.

Muitas de suas fotos, mesmo as de décadas atrás, continuam incrivelmente atuais. Qual você acredita ser o elemento que torna uma fotografia atemporal? O que você, como artista, busca em uma imagem para que consiga transcender o seu tempo?
A atemporalidade, para mim, não vem de um truque nem de um cálculo. Algumas imagens simplesmente resistem ao tempo porque carregam algo que continua vivo, mesmo quando o contexto em que foram feitas já desapareceu. Pode ser um olhar, uma luz, uma atmosfera, ou até algo que não consigo nomear. O sujeito fotografado também carrega essa imagem, trazendo-a consigo até os dias de hoje, acrescentando novas camadas de sentido. Um exemplo, uma foto que fiz do Lula quando ele ainda era um líder operário. É uma imagem aparentemente banal, dele fumando um cigarro encostado na parede de uma casa pobre e meio suja. O fato de ele ter se tornado quem se tornou trouxe a essa fotografia, até hoje, uma força que talvez ela não tivesse se fosse apenas a imagem de outra pessoa. Se você está inserido na sua época, inevitavelmente reflete o zeitgeist. E talvez seja justamente isso, junto com o tempo e com a trajetória de quem foi fotografado, que ajuda a imagem a se manter viva. Mas há também fotos que não dependem de pessoas, que existem para além do tempo porque, de alguma forma, são maiores do que ele. E você nunca sabe quando vai fazer uma fotografia que vai permanecer. No momento em que está realizando, nem imagina. Está fazendo para aquele momento, para aquele ambiente.

Acompanhe o trabalho de Bob Wolfenson
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Exposição Exteriores na Unibes Cultural (até 26 de outubro)
Exteriores (Livro)
Jornada fotográfica no Atacama com Bob Wolfenson

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