Lucio Ribeiro

O fundador do Popload e descobridor de talentos analisa como TikTok, IA e algoritmos estão transformando os caminhos da música e por que a curadoria humana ainda é essencial.

Lucio Ribeiro é um dos nomes mais respeitados no jornalismo musical brasileiro. Desde 2000, comanda o Popload, um dos veículos de maior influência na descoberta de novos talentos e na curadoria de qualidade. Sua trajetória vai além do digital: ele está na linha de frente de espaços como o Cine Joia e o Bar Alto em São Paulo, criando conexões reais entre artistas e público através de projetos como o Circuito Nova Música. Em tempos de overdose de algoritmos e playlists automatizadas, Lucio representa a resistência da curadoria humana – aquela que não apenas recomenda, mas conta histórias e cria contextos que transformam a descoberta musical em experiência cultural. E é justamente nesse espírito de vanguarda e curadoria apurada que o convidamos a compartilhar uma playlist especial: uma seleção de músicas que são a cara do Popload, do Circuito ou do Bar Alto, suas apostas pessoais mais quentes do momento, ou aquelas faixas que definem a música que realmente o interessa e o move hoje. Descubra as apostas e a vanguarda musical de Lucio Ribeiro: dê o play na playlist e leia a entrevista.

Lucio, qual é a transformação mais impactante ou o choque de realidade mais interessante que você observa hoje na forma como a música é criada, distribuída, consumida e vivida no Brasil?
A primeira pergunta é sobre o paradoxo de como a música está caminhando nesses tempos atuais: tempo de inteligência artificial, tempo de TikTok, que você não sabe exatamente de onde vem as coisas. Eu acho que ele é de alguma forma desafiador, quase assustador, porque eu, como estudioso de música há décadas, percebo que o caminho não é mais retilíneo. A gente não tem mais os caminhos da música na mão.

Eu vou dar um exemplo prático. Tem uma música do mundial de clubes da FIFA que tem uma música tema. Essa música tema ela ganhou as arquibancadas do mundo depois que um cara lá atrás, tipo nos anos 2018, 2019, fez a paródia musical pra um cara de um time dele que se eu não me engano era da Irlanda, e essa música ganhou arquibancada lá na Irlanda nesse time pequeno e veio vindo, vindo, vindo e começou a ganhar estádios na Europa e foi meio uma música tema da Euro, que o Campeonato Europeu de Seleções do ano passado 2024. Foi meio não oficial. Este ano a FIFA assumiu como uma música oficial e ela toca nos Estados Unidos inteiro nesse mundial que é uma música bizarra que você fala assim: tá, da onde vem essa música? Aí você vai ver, é da música de arquibancada da Europa do ano passado, mas não, aí você vai a mais, é uma música de arquibancada que partiu de uns times ingleses, aí você vai observar, você vê que ela nasceu na música de um time de um cara de torcida que fez a música na Irlanda do Norte, aí você fala, tá, mas ele fez essa música sozinha? Não, essa música era uma música eurodense italiana, que o cara mudou as letras pra botar um jogador, herói do time dele, e essa música é uma Eurodance italiana dos anos 90, de 96.

Então olha os caminhos da música. Ela nasceu como Eurodance esquecida. O cara, na Irlanda do Norte, por algum motivo, quis fazer uma paródia para o jogador do time dele, super pequeno. Ela começou a galgar arquibancadas na Inglaterra, virou uma música tendência não oficial na Euro, e aí neste ano ela virou a música oficial da FIFA.

Isso me faz lembrar a cultura TikTok. Às vezes você pega uma música que veio do nada e a gente tem milhões de exemplos. O Fleetwood Mac é uma dessas. O Fleetwood Mac, que é uma banda antiga, maravilhosa, incrível, estava esquecida até que um skatista tomando um suco botou no TikTok dele aí esse vídeo viralizou, a música viralizou, toda a galerinha nova que obviamente não conhecia começou a espalhar a música e fazer a música dentro do seu próprio vídeo, extrapolou o vídeo do cara original e virou uma febre, botou o Fleetwood Mac de novo nas paradas já trazendo para o mundo real.

Olha os caminhos da música: você não tem mais controle de nada. Isso é ruim? Não é ruim, é diferente, é desafiador, eu gosto. A coisa da inteligência artificial criando músicas só está no começo. A gente não sabe absolutamente onde isso pode parar. As transformações sempre pegam o espírito de tempo, e chegam na galera. Chegou na galera e espalhou, é legítimo. Então eu acho que o caminho da informação musical é muito mais pulverizado, amplo demais. Antigamente você era mais certeiro. Hoje em dia é um campo aberto.

Você pega uma banda como Pavement. O Pavement, por alguma obra do destino, caiu no TikTok com uma música que nem era das principais músicas. Era uma grande banda dos anos 90, indie. Fez uma história, tem uma importância na música alternativa americana, na música independente mundial. Com alcance ali, não é nenhum Pearl Jam, Foo Fighters, Red Hot Chili Peppers, mas era uma banda razoavelmente respeitada, grande de festivais no mundo inteiro. Eles pararam, ficaram um bom tempo inativos e agora nessa onda de bandas inativas voltarem e de repente ganharem mais dinheiro agora na volta do que quando, tipo o Oasis por exemplo, quando eles eram quando eles estavam no auge anos atrás, aí uma música dessas caiu, uma música lá do B do Pavement caiu num gosto do TikTok que não se sabe exatamente de quem foi que botou. Essa música viralizou pelo TikTok, fez o Pavement no Spotify, num streaming dele ali, ter uma consequência bizarra.

Por exemplo, essa música lá do B do Pavement tem hoje no Spotify, tipo, sei lá, chute de números, 15 milhões de escutadas, o hit, os dois maiores hits do Pavement de quando eles estavam no auge nos anos 90, nos anos 2000, não tem um milhão, entendeu? Então essa música lá do B tem 15 milhões de audições, de cliques, enquanto que no auge do Pavement, com os hits do Pavement, músicas que tinham clipe, que tinham clipe passando na MTV, que todo mundo cantava em festivais, tocava em rádio, tem um milhão. É um sinal de tempos, é o zeitgeist musical que a gente vive. São tempos estranhos, desafiadores, mas não necessariamente ruins.

O Popload sempre se destacou por “cantar a bola” de novos talentos. Com a avalanche de lançamentos e a força dos algoritmos, qual o principal desafio e a maior responsabilidade de um veículo como o Popload em manter uma curadoria relevante e que realmente surpreenda o público hoje?
A curadoria humana é um ato de resistência e um enfrentamento novo. Quando eu consumia música, o meu algoritmo eram dois caras que escreviam na Folha de São Paulo. Imagina o que pode ser hoje esse algoritmo.

Às vezes, esse curador humano pode ser o seu vizinho, pode ser o seu amigo que você não sabia que falava de história, ou de música, ou de culinária, e você passa a se identificar com o produto que ele está gerando. Eu acho que a curadoria humana ainda consegue trazer uma confiabilidade de gosto. Hoje em dia é um trilhão de curadores. Separar o sinal do ruído é desafiador. A gente vive tempos de mudanças. Não é só música, mas é de cinema, gastronomia, história de futebol.

Eu não gosto desse robô do Spotify que fala ‘se eu gostei da música X eu vou gostar da Y’. Mas se um cara da BBC que eu gosto me fala, me toca uma música X, ainda consigo fazer esse filtro com muito mais caminhos do que tínhamos nos anos 90, nos anos 2000.

Há uma transformação que a gente só fica curioso, porque sabemos que ainda estamos no meio do caminho dessa revolução de costumes. A inteligência artificial ainda vai ser muito mais brutal. Mas eu acho que sempre haverá uma curadoria humana, ainda que de nicho, viva, para iluminar algum caminho. Mas é um caminho super aberto. Talvez o nosso cérebro não esteja preparado ainda.”

Projetos como o Circuito Nova Música são uma aposta fundamental na renovação constante da cena. Que movimentos, gêneros ou quais novos artistas brasileiros mais te empolgam ou te dão esperança pela originalidade, discurso e pelo potencial de realmente oxigenar o que se ouve atualmente?
É um conjunto de coisas, né? Então, assim, tem atitude, tem atitude. Mas tem uma história para contar? Tem a relevância musical, lógico, essa música é legal, mas ela tem uma história para contar? Ou como se valoriza essa música legal para uma coisa além do gosto? O que essa banda tem para representar? O que ela fala? De onde ela é? Ela vem de onde? A música que ela faz tem a ver com o meio ambiente dela, com os amigos dela, com o meio em que ela vive?

Isso é fundamental, eu acho que a música tem que ter história, a banda tem que ter história. Então assim, quando você consegue combinar música boa com uma história legal que vale a pena de ser dividida, compartilhada, como o termo de hoje em dia, fica muito mais fácil de você, entre aspas, vender essa música para outros ouvidos, entendeu?

Então existe isso de modos até por conta de todas as facilidades tecnológicas que podem nos levar a caminhos assustadores, que eu estou usando essa palavra, mas de novo, não no sentido ruim. Você consegue, você consegue achar um infinito de bandas legais, músicas legais, histórias legais que às vezes não aparecem porque não tinham chance de aparecer. Então essa busca do novo está ficando cada vez melhor na verdade. É desafiador, é assustador, repito, mas é mais legal.”

Você tem uma ligação forte com espaços que são referência em SP e com a criação de projetos como o Circuito Nova Música. Numa era tão dominada pelo digital, como você enxerga como o futuro e a importância dos palcos e dos encontros presenciais para a saúde da cena e para a descoberta de novas e autênticas propostas musicais?
A coisa do palco, a importância do palco, seja ele pequeno, médio, grande, ela é uma coisa super viva porque ela é a tradução real do que hoje em dia o modo de consumir indica, né? Que você cada vez mais consegue gostar de uma banda sem sair de casa, ouvir opiniões sobre a banda sem sair de casa e às vezes ir num show de uma banda sem sair de casa, porque você logo tem no YouTube, logo tem no live streaming ao vivo e com várias câmeras, e às vezes você não sai de casa. Mas aí já é uma opção de tempos modernos, né?

E de uma certa forma, essa cena real ela continua sendo única para você conhecer pessoas, porque o barato da música não é só a banda, não é só a música e não é só o palco, é tudo que tem em volta.

Isso é uma máxima que a gente tem, que a gente bota por exemplo no Circuito (Nova Música) como um projeto que valoriza absolutamente todos os caminhos que levam a música que não seja só o show. Então assim, é todo mundo que está lá, é o cara que vai estar lá porque ele é da moda e vai ter um vislumbre de como a galera do mundo real está se vestindo para ir no show da banda tal. O designer que vai falar assim: nossa, eu poderia fazer os pôsteres desse show dessa forma porque essa música me remete a coisa a construtivismo alemão e daria para fazer um show… Eu estou falando isso com conhecimento de causa porque tem uma galera fazendo um pós-punk louco, que os pôsteres de construtivismo alemão começam a surgir.

Enfim, só para você ter uma ideia de como a música se caminha, e ela é muito mais do que palco e ela é muito mais do que música, que a música em si, que o show em si e que a banda em si, é todo um ambiente que só o mundo real ainda consegue, de repente, te transportar nele. De você fazer amigos, de seus amigos estarem lá e você se sentir bem deles estarem lá no show tal.

Claro que tudo isso depende da sua situação geográfica. Se você está no interior do Mato Grosso do Sul e gosta do Vera Fischer Era Clubber, que é uma banda carioca, não é toda hora que você vai conseguir ver essa banda ao vivo no mundo real. Ou você vai para São Paulo e Rio, ou você assiste pela internet no picado que o mundo online te dá.

Mas ainda assim, o mundo real ele é mega importante exatamente para ligar todos os pontos que eu falei aí: dos designers, do cara da moda, do cara que quer só fazer uma amizade numa noite e tomar uma cerveja, um drink. Essa importância de palcos pequenos, ela aparentemente pode ter deixado um pouco desse assunto, mas ela nunca deixou de existir porque ela sempre está sendo movimentada.

No deepbeep, nossa briga é por uma descoberta musical com mais alma e menos automação. Além do seu radar profissional superapurado, como você fura a bolha dos algoritmos no seu dia a dia para encontrar aquelas músicas que realmente te tocam de forma pessoal, talvez de um jeito totalmente inesperado?
Sobre ser curador profissional e entrando no modo fã, eu acho que eu não consigo sair de um e entrar no outro, porque os dois sempre andaram juntos, sempre, sempre, na minha vida inteira. Eu costumo dizer que para música e para futebol, se eu não estivesse trabalhando com isso, eu estaria gastando meu tempo nisso, entendeu?

Então, assim, tudo bem que eu escrevo às vezes uma banda que eu gosto, mas se eu não estivesse escrevendo alguma coisa que eu gosto, uma banda, uma música que eu gosto, em termos profissionais, eu estaria escrevendo para amigos, dizendo, dá uma olhada nisso, olha que legal. Principalmente em redes sociais, né, que essa prosa de divisão de gostos, ela foi amplificada de um jeito gigantesco, que antes só tinha o jornal ou a revista Bis, né, depois os blogs de internet começou a se amplificar gostos e chegou nos tempos de hoje.

Mas o meu caminho secreto para descobrir música é o que sempre foi assim. É estar com uma antena ligadíssima. É estar prestando atenção nas pessoas que eu sempre confiei. Ou que me deixou curioso. E isso não quer dizer o jornalista incrível da Rolling Stone americana. Isso pode ser um cara de rádio ou um moleque de São Paulo que sai para shows e posta coisas legais e eu fico de olho nele.

Então, assim, o meu leque, a minha antena, que antigamente captava três ou quatro mensagens, hoje capta 4 milhões de mensagens. Eu sou um curador de mim mesmo, na verdade. Isso é legal, isso não é legal? Isso aqui é a hora de eu estar ouvindo isso? Não. Então eu vou ouvir outra coisa. Ah, isso daqui eu estou gostando pra cacete e mais pessoas estão falando. Então eu vou nessa. Então agora minha antena ela amplificada… Se eu dou vazão pra entender o que tá rolando na minha antena, pra mim isso é… isso é o jeito que eu consumo música hoje, e não quer dizer que eu concorde sempre, mas eu gosto do jeito curioso das pessoas gostarem de coisas, né, então por exemplo, se você, Lísias, que é meu grande amigo e eu gosto do seu jeito de enxergar as coisas, de lidar com informações culturais, me fala assim, putz, esse quadro aqui, ou essa música ou esse filme, ele é legal por isso, isso e isso, às vezes eu não acho, não concordo, mas eu tô interessado em saber o que você tá achando e por que você tá achando isso, sabe?

E de novo, isso é com o cara que eu sempre escutei na minha vida, que é um radialista da BBC, e pode ser uma menina que está do meu lado ali, está aprendendo as coisas, mas ela tem um jeito natural e moderno do tempo dela de aprender informações culturais que me cativa, não necessariamente me torna um adepto das coisas que ela gosta. Mas eu quero entender o que ela gosta e entender mais ainda porque ela gosta, sendo ela uma menina dos tempos atuais.

Porque às vezes bate para mim um negócio, sei lá, que eu acho que era meio que foi com jazz e rock, que foi com bandas de metal ou punk lá atrás, grosso modo, mas que hoje tem uma outra importância. Às vezes uma música bate pra ela de um modo importante de mental health ou de salvar a humanidade dos problemas ambientais que pra gente não bate. É mais legítimo? Ou eu tenho razão e ela não tem? Ou ela tem e eu não tenho? Não, mas assim, essa antena geral, essa antena geral é muito importante você cultivá-la e eu gosto de cultivar a minha. Às vezes isso dá dor de cabeça porque é muita coisa e você fala assim: ah, se eu não… se eu ficar o tempo inteiro nisso… mas como eu disse lá em cima, a parte minha de curador profissional e de fã, no caso de música do que a gente está falando, é a mesma, por mim está tudo bem.”

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