Giovana Madalosso

Giovana Madalosso

A literatura como tecnologia à prova de algoritmo. Giovana Madalosso sobre a escrita que nasce do isolamento e a ficção que desafia certezas.

Giovana Madalosso opera em dois tempos. Na crônica, ela devora o agora, a notícia, a rua. Na ficção, ela precisa do oposto. Precisa do isolamento. Para ela, construir um personagem é um ato de convivência longa, meses ou anos antes da primeira linha ir para o papel. É um processo que exige silêncio, uma fuga da bolha digital. Como ela mesma define, o livro é uma ‘invenção milenar que segue sendo uma tecnologia avançada’. Convidamos a autora para uma conversa sobre esse processo artesanal de escrita e a função da dúvida na literatura. Nossa provocação foi a playlist ‘A Batida Só’, uma trilha que mapeia as inspirações de seu romance Tudo Pode Ser Roubado. A seleção comentada está logo abaixo. A conversa completa vem a seguir.

Lísias Paiva, editor-fundador

Giovana, seus livros e crônicas têm um olhar muito afiado para as dinâmicas do Brasil urbano e contemporâneo. Onde você encontra suas histórias? É um processo de observar conversas, de ler o noticiário, ou as personagens simplesmente aparecem e começam a falar com você?
As crônicas têm um processo de criação bem distinto dos livros. Para escrevê-las, eu preciso estar ligada ao mundo, já que minhas inspirações vêm das notícias e do que pulsa nas ruas, ao meu redor. Meus romances e contos vêm de um outro lugar, suspenso sobre esse tempo cotidiano. Para criar ficção, quanto mais eu me desligo da realidade, melhor. Por isso tantos escritores gostam de passar períodos isolados: porque, para a escrita render, às vezes é preciso passar mais tempo lá, no universo criado, do que aqui.

Suas personagens femininas são complexas, cheias de ambiguidades e fogem dos clichês. Como é o seu processo para construir uma personagem? Você precisa entendê-la e defendê-la completamente, ou a beleza está em manter uma certa distância e apenas observar suas ações?
Acho que o segredo para construir um bom personagem é conhecê-lo bem, passar bastante tempo com ele na cabeça antes de levá-lo para o papel. Meus personagens ficam na minha cabeça por meses, às vezes anos, antes de eu começar a escrevê-los. Também faço pesquisa e anotações, construo um passado para cada personagem principal, seja masculino ou feminino. Assim, quando pousam na página, eles já chegam cheios de complexidades, das ambiguidades inevitáveis da experiência humana. É preciso resistir à tentação de criar personagens bons ou maus. Ninguém é totalmente virtuoso ou totalmente nefasto. E é nessa senda do irredutível e do vulnerável que se constitui a verossimilhança dos personagens que parecem de carne e osso.

O deepbeep se inquieta com o mundo dos algoritmos, que podem nos fechar em bolhas de referência. Como uma escritora que precisa estar atenta ao mundo, como você faz para furar sua própria bolha e alimentar seu repertório com ideias e vozes que te surpreendam e desafiem?
Leio livros. Essa invenção milenar segue sendo uma tecnologia avançada, cheia de vantagens e ainda livre do algoritmo. Mesmo que as redes recomendem mais tal ou tal título, uma pernada pelas estantes de uma livraria resolve o problema.

A escrita, assim como a música, tem ritmo, cadência e melodia. Que papel a música tem no seu processo de escrita? Você ouve música para criar uma atmosfera, para encontrar o “tom” de uma cena, ou precisa do silêncio absoluto para ouvir a voz dos seus personagens?
Para escrever, preciso de silêncio. Mas às vezes escuto música antes de escrever. Crio playlists para cada um dos meus livros. Uso a música para me transportar para os universos das minhas histórias e tentar sentir o que meus personagens devem estar sentindo.

Seus textos muitas vezes deixam o leitor com uma inquietação, uma pergunta em vez de uma resposta. É essa a sua busca como escritora? Desafiar as certezas do leitor e provocar uma reflexão sobre o nosso tempo, em vez de oferecer conclusões fáceis?
Romances não oferecem respostas. Respostas estão em livros de autoajuda. A narrativa ficcional nos leva para a subjetividade do outro e nos confronta com muitas perguntas. É isso que eu busco: desafiar as certezas do leitor, levá-lo a se questionar e a questionar pré-julgamentos.

Playlist: A Batida Só
A seleção de faixas que inspiraram a narrativa e o coração arrítmico da protagonista de “Tudo Pode Ser Roubado”, comentada pela autora:

  1. Coração Selvagem, Belchior: Deu origem à primeira epígrafe do livro e foi inspiração, já que o coração arrítmico da narradora tem “essa pressa de viver.”
  2. Nine Out of Ten, Caetano Veloso: Deu origem à segunda epígrafe do livro e também foi inspiração para a narradora; sentimental demais desde criança, ela saía do cinema no meio dos filmes de tanto chorar: “Nine out of ten movie stars make me cry, I’m alive”.
  3. By This River, Brian Eno: Quando a narradora descobre que precisa ficar um tempo sem estimular o coração, sem fazer aulas de dança e sem ter emoções fortes, se despede lentamente da dança com a lentíssima By This River.
  4. The Sound of Silence, Simon & Garfunkel: Depois de uma jornada de antidepressivos e antiarrítmicos, a narradora volta a sentir, volta a se deparar com a tristeza. E, nessa hora, lembra-se da letra: “Hello, darkness, my old friend, I’ve come to talk with you again.”
  5. Nessun Dorma, Turandot: Música preferida do personagem Nico, de dez anos, que adora ópera.
  6. Romaria, Renato Teixeira: Música que me ajudou a entrar na personagem Sara, em sua romaria com o filho doente.
  7. Do You Realize??, The Flaming Lips: Letra e melodia que me fazem pensar na finitude e no valor da vida, questões muito presentes nesse romance.
  8. Eu Só Peço a Deus, Beth Carvalho e Mercedes Sosa: Outra letra que me fez pensar na finitude da narradora: que a morte não me encontre um dia, solitário sem ter feito o que eu queria.

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Acompanhe o trabalho de Giovana Madalosso
Giovana Madalosso no Instagram
Coluna da Giovana Madalosso na Folha

Fotos: Renato Prada

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