
Lia Vissotto, criadora do m-v-f- fala sobre a alma como critério de curadoria, o videoclipe como memória e a resistência de um formato que sobrevive aos algoritmos.
O deepbeep apoia o m-v-f- (Music Video Festival) e há uma razão clara para isso. Há 13 anos, Lia Vissotto mapeia um território que muda o tempo todo. O videoclipe, que muitos tratam como peça de marketing, vira obra, documento e memória nas mãos dela. Em um tempo em que o olhar se fragmenta em segundos verticais, Lia segue apostando na alma, na faísca, no “clickzinho no cérebro” que só uma narrativa audiovisual bem construída consegue provocar. Seu trabalho não cultua nostalgia; cultua intenção. É uma defesa radical da criatividade humana, seja ela analógica, digital ou híbrida, desde que tenha vida própria. Nesta conversa, ela fala sobre garimpo, legado e por que, apesar das profecias de “morte do videoclipe”, o formato continua sendo um espaço de liberdade que nenhuma métrica conseguiu domar. Para marcar o encontro entre o deepbeep e o m-v-f-, Lia preparou uma videolist especial com 13 obras, uma para cada ano de festival, guiada pelo seu momento atual de ruptura e reconexão.
Lísias Paiva, editor-fundador
Lia, o m-v-f- se tornou uma referência na celebração do videoclipe. Em tempos de consumo visual tão rápido e fragmentado (TikTok, Reels), qual você vê como a principal função do festival hoje? É preservar a arte do clipe ou inspirar novos formatos?
Sinto que o papel do m-v-f- é, sim, primordialmente, o de resgatar e proteger um formato audiovisual que, embora pareça estar sendo “substituído” pelos novos formatos curtos, verticais e feitos para agradar aos algoritmos, ainda revela um vigor criativo impressionante. O número de inscrições no m-v-f-awards não diminui a cada ano — pelo contrário. E a qualidade criativa também não decepciona. Sempre há um quê de inovação — que, a meu ver, vai muito além do uso de novas tecnologias ou suportes: está em novos olhares, ideias narrativas e abordagens visuais. Isso acaba revelando talentos que talvez não tivessem espaço para serem reconhecidos de outra forma. Faço até um exercício curioso com meu filho de 11 anos, já totalmente cooptado pelos “shorts” do YouTube. Chamo-o para ver um clipe que gostei, e muitas vezes ele assiste até o fim… e passa a gostar da música também. Acho que o m-v-f- é exatamente isso: um convite para um olhar mais atento, para conteúdos mais elaborados e qualificados.
O m-v-f- tem um ‘olhar individual’ muito claro na sua curadoria. Ano após ano, quais são os critérios ou a ‘assinatura’ intuitiva que definem um trabalho como ‘a cara do festival’? O que vocês buscam além da técnica?
Alma. Um clipe tem que ser capaz de causar alguma emoção, aquele clickzinho no cérebro – e o gatilho pode ser a história, uma atuação, um look, um ângulo, a coreografia, a direção de arte – ou simplesmente a ideia. Isso fica muito evidente quando todos esses elementos combinados resultam em uma entrega visual que consegue traduzir o zeitgeist da música, uma espécie de realidade expandida daquilo que o artista apresenta em letras e melodias. E para isso é preciso sensibilidade, criatividade, sinergia. Dá para perceber, no resultado final, quando houve esse tipo de entrega.
O deepbeep celebra o ‘artesanal’. Como o m-v-f-, sendo um festival focado em uma mídia inerentemente digital, consegue valorizar e dar palco ao processo artesanal da produção de um videoclipe, muitas vezes feito com orçamentos apertados e muita criatividade?
O digital é parte inerente do consumo de conteúdo hoje, e o vejo muito mais como um suporte — assim como os antigos sistemas analógicos — do que como um conceito conclusivo. É claro que os recursos digitais têm hoje um impacto significativo na produção imagética, mas ainda assim é possível reconhecer conteúdos mais “artesanais”, entendendo o artesanal mais como uma ideia do que em seu sentido literal. Antes, isso se traduzia em clipes com cenários engenhosos e efeitos inesperados, como os de Michel Gondry ou o icônico “Virtual Insanity”, do Jamiroquai. Hoje, esses mesmos resultados podem ser alcançados com IA — mas o ponto é que as referências estão aí, criadas por alguém, em algum momento. É esse o papel do m-v-f-: mapear e celebrar a produção criativa, seja através de meios analógicos ou digitais, mostrando que a criatividade é um bem compartilhado entre o humano e a máquina. No fim, tudo depende de alma e sinergia.
Como funciona o seu processo pessoal de ‘garimpo’? Onde você descobre os clipes que te surpreendem? É um trabalho mais de pesquisa direcionada ou de descobertas intuitivas e acasos felizes?
Ao longo destes 13 anos de m-v-f-, desenvolvi parcerias precisas com festivais de outras partes do mundo – Canadá, Inglaterra, Colômbia, Argentina, Peru. Isso resultou em uma série de colaborações que envolvem participar do processo de seleção das premiações desenvolvidas nesses países, o que me possibilita entrar em contato com uma quantidade relevante de trabalhos magníficos. Sem falar no m-v-f- awards – todo ano dedico um tempo considerável assistindo a simplesmente TODOS os clipes inscritos. Para mim, é um prazer – e garantia de que serei surpreendida por coisas muito boas.
Olhando para o futuro, qual é a conversa mais importante que você espera que o m-v-f- provoque sobre a relação entre música e imagem no Brasil e no mundo?
Não tenho a pretensão de que o m-v-f- mude a percepção sobre a relação entre música e imagem — meu intuito é mais o de deixar um legado, um mapeamento de uma produção criativa que segue pulsante, mesmo diante da redução constante de investimentos na área. É uma tarefa hercúlea, porque a sensação é de que, muitas vezes, ninguém mais se importa — e quando a Anitta declara a “morte do videoclipe”, tudo parece ainda mais desafiador. E veja, um clipe dela ganhou o m-v-f- awards no ano passado. Mas, a meu ver, o clipe nunca foi sobre números. Não é um produto audiovisual pensado para gerar receita, como os conteúdos de streaming. Ele nunca nasceu com essa lógica. Para mim, o clipe é um exercício audiovisual, uma poderosa tradução estética da música. É um espaço de liberdade criativa que já serviu de trampolim para muita gente incrível por aí. E, acima de tudo, é memória. Deliciosas memórias.
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