
Para o ator, a arte é a ferramenta para metabolizar a vida, e a função do palco é criar empatia. Uma conversa sobre cura, risco e a coragem de permanecer em busca.
Marco Pigossi vive um novo momento em sua carreira, um lugar onde o risco é mais interessante que a segurança e onde dizer “não” se tornou seu principal ato de resistência criativa. Para ele, atuar vai além de interpretar. É um ofício de empatia, de transformar a própria vida em ficção e, acima de tudo, de permanecer em um estado de busca e inacabamento. Ele deixou a performance do excesso para se dedicar a um trabalho guiado pela escuta e pela delicadeza, em que a faísca nasce da fricção interna e não do ruído externo. Nesta conversa, o ator fala sobre seu processo, a coragem de se expor em seu novo filme High Tide e por que acreditar estar pronto é o fim. A trilha sonora que o acompanha nessa jornada é feita de grandes contadores de histórias, de Elis Regina e The Smiths a Radiohead, vozes que o inspiram a seguir perguntando. Escute e inspire-se também!
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Sua carreira atravessa TV, streaming e cinema independente. Mas além de formatos e fronteiras, qual é, para você, a verdadeira função do ator hoje? É emprestar corpo e voz a personagens, ser um tradutor de sensibilidades humanas, ou talvez provocar conversas que a sociedade ainda não consegue ter sozinha?
Acho muito interessante investigar essa questão, até porque acredito que todas essas funções estão profundamente interligadas. Para mim, a função do ator é, sim, emprestar corpo, voz e emoções a um personagem, mas isso é só o ponto de partida. O ator se torna um tradutor de sensibilidades e sensações, alguém que transforma algo abstrato em algo palpável, visível, quase físico. A arte, de forma mais ampla, tem como função provocar, questionar e abrir espaços de conversa que talvez ainda não tenham sido formulados de maneira clara na sociedade. Não é que a sociedade “não consiga” levantar essas questões sozinha, elas surgem naturalmente, mas é através da arte que conseguimos elaborar essas perguntas, dar-lhes forma e torná-las partilháveis. O teatro, o cinema, a TV e o streaming criam um espaço seguro para identificação. Ao ver uma história, o público se conecta com o problema ou com o personagem, sente o que ele sente, experimenta outra perspectiva. E é nesse movimento que se constrói empatia. Gosto muito de uma frase do Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, “O teatro é a primeira invenção humana e, quando o homem descobriu o teatro, descobriu que podia reinventar-se.” Talvez a função mais profunda do ator seja essa, oferecer ao público a experiência de se colocar no lugar do outro, de sentir o que ele sente, e quem sabe, a partir daí, repensar suas próprias relações, crenças e escolhas.
High Tide nasce no cruzamento entre sua vida pessoal e sua trajetória internacional. Como é transformar experiências tão íntimas em ficção e oferecê-las ao público? Essa exposição é libertadora, arriscada ou inevitável?
Transformar experiências íntimas em ficção é, para mim, uma forma de metabolizar a vida. É inevitável. Tudo o que vivi atravessa meu trabalho de alguma forma. Mas também é libertador, porque ao transformar uma experiência em arte, eu a reorganizo, ressignifico e posso olhar para ela de outro ângulo. Claro que existe risco, expor-se é sempre arriscado. Mas acredito que é justamente nesse risco que está a força do encontro com o público. Quando algo nasce de um lugar verdadeiro, há uma chance maior de que alguém do outro lado se reconheça ali. E esse reconhecimento, essa identificação, é o que me move. High Tide é, para mim, uma travessia entre o íntimo e o imaginário. Sempre quis falar sobre isso através do meu ofício, porque acredito que a arte tem o poder de curar, de abrir caminhos, sangrar o que precisa ser curado e costurar de novo. Se não fosse pela minha profissão, talvez eu já tivesse me perdido na vertigem de certas vivências. Esse mergulho tão profundo em algo que vivi de forma tão próxima, criado e produzido por mim, escrito pelo meu marido, acaba se tornando uma carta de amor à minha própria história, um gesto de reconciliação com o que fui e com o que me tornei.
Vivemos uma era em que algoritmos filtram as histórias que chegam até nós, e muitas vezes moldam o que se produz. Como um ator que escolhe projetos fora do molde esperado, como você navega entre a demanda de mercado e a necessidade de contar histórias que incomodam, que desafiam e que criam novas referências?
Hoje eu realmente não estou nem aí para o algoritmo, para números ou para o que é considerado “tendência”. Passei muitos anos fazendo exatamente o que esperavam de mim, entregando, agradando, seguindo o roteiro do que era considerado sucesso. E foi só depois de muito trabalho, de construir uma certa rede de segurança, que ganhei a liberdade de escolher diferente. O que me interessa agora é o oposto, explorar histórias que desestabilizam, que mexem onde dói, que quebram as expectativas. Quero me colocar em risco, me incomodar e, se possível, incomodar o público também. Não para chocar por chocar, porque isso не leva a lugar nenhum, mas para provocar algum deslocamento, abrir uma fresta, gerar uma faísca de transformação. Hoje, a melhor forma de não sucumbir ao que o mercado, o algoritmo ou “todo mundo” quer é dizer NÃO. Dizer não virou meu maior ato de resistência e também o que mais me garante liberdade criativa. Prefiro ser lembrado por ter contado histórias que fizeram alguém pensar diferente do que por ter agradado a um algoritmo.
Você já contou que para viver Lourenço, em High Tide, passou dias isolado para acessar a solidão do personagem. A música, as memórias ou o silêncio são suas principais ferramentas nesse mergulho? Como nasce a faísca que conecta você a um papel?
A música e o ambiente sempre foram fundamentais para mim na composição de personagens. Uma trilha certa ou um espaço com a energia adequada tem o poder de moldar meu estado emocional, de me colocar no tom exato do que preciso viver. É quase como se criassem uma moldura onde eu posso entrar e começar a habitar aquele universo de forma mais orgânica. Por muito tempo, eu acreditei que o bom trabalho vinha do excesso, da exaustão, da entrega até o limite, da experimentação quase enlouquecida. Hoje penso exatamente o contrário. Descobri que quanto mais alinhado e centrado comigo mesmo, mais interessante e profundo se torna o trabalho. Sobretudo quando falamos de uma história como High Tide, que é um filme sutil, contemplativo, muito inspirado pelo cinema europeu. Lourenço vive uma fase específica da vida, e minha função era capturar essa fase com precisão e delicadeza, sem cair no melodrama. É um trabalho que exige mais escuta do que grito, mais presença do que esforço. E acho que é justamente aí que nasce a faísca que me conecta a um papel, quando encontro algo no personagem que reverbera em mim, algo que me provoca a olhar para dentro, que me desestabiliza de alguma forma. Às vezes é uma cena específica, uma fala, ou até uma sensação difícil de explicar, mas que me puxa para perto, que me faz querer investigar quem aquela pessoa é. É esse ponto de fricção que acende a chama — não algo externo, mas algo que me obriga a me mover por dentro.
Se sua obra fosse uma conversa em andamento com o mundo, qual seria a pergunta que você ainda não conseguiu responder em cena, mas que gostaria de deixar ressoando no público?
Uau! Que difícil pensar em uma pergunta, mas eu AMO a ideia de minha obra ser uma eterna conversa com o mundo. Talvez seja justamente sobre isso. Manter o diálogo. Afinal, quando estamos prontos? Shakespeare disse em Hamlet: “Estar pronto é tudo.” Mas eu sempre pensei que, se estamos prontos, então já não há mais nada a fazer. É o fim. Talvez por isso eu faça arte, para permanecer em estado de busca, de inacabamento. Para não chegar a esse ponto de “prontidão” que encerra o movimento. Gosto da ideia de que o teatro, o cinema, a arte como um todo nos mantêm em suspensão, sempre aprendendo, errando, nos transformando.
Fotos: Gerson Lopes
Acompanhe o trabalho de Marco Pigossi
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High Tide (filme)
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