
Catto e a arte como o espelho da verdade. O palco como o lugar para ser sempre alguém nova para si mesma.
Catto ocupa o palco como um território de transmutação. Com uma entrega teatral e uma voz que é um acontecimento dramático, ela entende a arte como o espelho da verdade que a revelou para si mesma. É um trabalho onde cantar é dizer, e tudo acontece para que a palavra brilhe. Ela se vê como uma atleta da performance, dona de uma formação old school que se nutre tanto da disciplina quanto dos próprios desvios. É uma obra que prova que a vida boêmia e o estudo rigoroso são, ambos, matéria-prima para a reinvenção. A conversa completa sobre a transição de gênero provocada pelo desejo artístico e a playlist que a aquece para o palco estão logo abaixo.
Lísias Paiva, editor-fundador
Catto, sua arte é marcada por uma entrega teatral e uma intensidade emocional muito potentes. Qual é o sentimento ou a narrativa sobre amor, desejo e identidade que mais te move como artista?
Eu acho que o sentimento que mais me move é o de superação. Eu acho que a gente sempre tem que se transmutar através das nossas experiências. A vida é uma correnteza que sempre leva a gente para frente. Eu acho que a grande dor é a gente ficar apegado ao passado. Então, acredito que o que me motiva a escrever, cantar e estar ali no palco é sempre ser alguém nova para mim mesma. E também honrar as histórias que eu vivi através da arte.
Sua voz é um instrumento de uma dramaticidade imensa. Como você trabalha a relação entre a voz, o corpo e a cenografia para criar as experiências pelas quais seus shows são conhecidos?
A minha relação com o corpo e com a voz é integral. Eu sou muito a minha voz, e ela é fruto de um trabalho corporal muito intenso. Antes de mais nada, acho que me vejo quase como uma atleta, em termos de performance de corpo e voz. Gostaria de ser mais disciplinada, gostaria de não ser tão junk (risos)… amaria também. Acho que a minha vida boêmia serve, de certa forma, para que eu continue criativa. Mas é muito complicado, pra mim, me dividir entre a pessoa que treina, que estuda, e os meus desvios — que também são indispensáveis para que eu seja quem eu sou. O meu trabalho de corpo é muito ligado ao movimento que a minha voz faz dentro de mim, pra que ela possa ser projetada. Quando eu começo a cantar, literalmente o que eu sinto é que subi em cima de um cavalo. Às vezes eu caio. Mas, geralmente, eu consigo trotar nele com técnica.
Qual elemento ou alquimia você busca em uma canção, sua ou de outros artistas, para que ela consiga gerar uma conexão emocional profunda e transformadora em quem ouve?
Eu acho que o elemento é a palavra, né? Cantar, pra mim, é dizer. Então, quando eu tô cantando, eu tô dizendo aquilo. Eu fico profundamente mexida com o texto do que eu canto, mesmo quando estou cantando músicas de outros compositores. Essa sempre foi, pra mim, a maneira de me conectar com a canção: através da palavra. Acho que tudo que acontece na música é para que a palavra brilhe. Eu gosto muito do silêncio também. E acho que, cada vez mais, eu sou uma cantora, como posso dizer… surpreendentemente muito econômica. Pode não parecer, mas eu sou.
Seu trabalho celebra uma expressão de gênero e identidade fluida. Qual a importância da arte como um espaço para desafiar normas e para que as pessoas se sintam representadas em sua complexidade?
Acho que a arte é o lugar da invenção. Acho que a arte é o lugar da verdade. Ela me revelou pra mim mesma antes mesmo de eu ter consciência de quem eu era. Porque, quando me deparo com um desejo artístico de mudança, um desejo que me leva a querer sair do lugar onde estou, transgredir as regras às quais estou submetida, é como se eu estivesse diante de um espelho da verdade. E aquela verdade precisa acontecer, entende? É sempre um desafio. A arte, pra mim, é como um encantamento que me chama na direção do que vem a seguir, do que é próximo, do que me move. E acho que toda a minha transição de gênero também foi muito provocada por esse desejo artístico de me sentir completa — de me entender através da moda, da performance, de vários elementos da minha arte que me tiraram do casulo e me expuseram à realidade de quem eu sou.
Para construir um universo artístico tão singular e rico, como você descobre e se conecta com referências (musicais, literárias, visuais) que alimentam sua arte, fugindo das sugestões óbvias dos algoritmos e encontrando o que realmente dialoga com sua intensidade?
Eu acho que, na verdade, sou uma pessoa meio old school. Cresci numa época analógica. A internet chegou pra mim depois que eu já tinha devorado muitas coisas importantes. Eu li muito quando era muito jovem, escutei muitos discos, consumi muitos filmes… Sinto que tenho uma base artística que veio da minha curiosidade naquela época, e essa base me sustenta até hoje. Hoje em dia, eu não vejo tantos filmes quanto gostaria, não leio tantos livros quanto gostaria… O meu fazer artístico acaba ocupando tanto espaço que eu me tornei uma pessoa mais silenciosa em vários aspectos. Mas tudo que vivo ainda se nutre muito daquela base. Eu gosto dos cânones. Gosto do rock clássico, de guitarra, baixo e bateria. Gosto das cantoras chiquérrimas da MPB, dos grandes compositores, da música erudita e também da farofa, da novela, da música popular, da música de rádio. Fui abençoada por uma época muito efervescente da cultura, em que a gente tinha acesso a muita coisa através do rádio e da TV. Hoje, eu me sinto um pouco assediada por um excesso de material que, sinceramente, não me interessa. No fim das contas, acabo escutando e indo atrás do que chega até mim com naturalidade, coisas que são recomendadas por amigos, que vejo por aí… E eu também adoro conhecer música na pista de dança. Acho que é um lugar onde, quando estou dançando, sinto que as coisas acontecem com mais verdade.
Fotos: Ivi Maiga Bugrimenko (capa) e Gustavo Koch (internas)
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