
Do cinema à política, uma conversa sobre a urgência da representatividade, a luta contra a invisibilidade e o poder de “reescrever a dor” como ato de transformação.
Pedro Henrique França é um artista que atua em estado de urgência. Seja no cinema, no jornalismo, no teatro ou em podcasts, seu trabalho é movido por uma convicção: a de que a diversidade não é uma opção, mas a essência de um mundo justo. Como fundador da produtora Representa e criador de projetos como o documentário ‘Corpolítica’ e o essencial ‘PCDPOD’, ele se tornou uma voz fundamental na luta por representatividade. Homem gay e com deficiência, ele amplifica as pautas das minorias com uma crítica afiada contra a homogeneidade do poder e das narrativas. Nesta conversa, Pedro fala sobre arte como ferramenta de transformação, os limites da representatividade e por que reescrever a dor é o que o faz acordar todos os dias. E é nesse fluxo de inspiração e ativismo que o convidamos a compartilhar uma playlist muito particular: as músicas que representam seu olhar sobre os temas que o movem atualmente. Conecte-se com as causas e inspirações do Pedro: ouça a playlist e leia a entrevista.
Pedro, atuando em tantas frentes importantes – cinema, jornalismo, o “PCDPOD”, “Representa” – qual é a história ou o tema mais urgente que você sente que precisa ser contado, amplificado e ouvido atualmente, e como suas diferentes linguagens contribuem para isso?
Eu sou formado em jornalismo, mas sempre quis ser artista. Aí fui pro roteiro, abri minha produtora, a Representa, comecei a dirigir clipes, fiz um documentário, estou desenvolvendo outro, tenho projetos de livro, tenho vontade de fazer nova temporada do PCDPOD, estou viajando com o espetáculo “Meu Corpo Está Aqui” como ator, quero fazer um monólogo. Minha cabeça não para, porque a arte me move e sei que, apesar de ainda errar e invisibilizar muito, ela tem uma enorme chance de transformar o mundo e a individualidade de muita gente. E acho que em tudo que faço e realizo, todas essas minhas frentes aparecem em algum lugar. Quando estou no palco interpretando, de alguma forma eu estou ali questionando a plateia e informando. Eu não consigo dissociar muito todas essas vestimentas. Eu visto todas elas e sou muito feliz assim.
As injustiças do mundo me movem, e a diversidade é algo fundamental em tudo que realizo e nas histórias que conto. O mundo não é homogêneo. Ele é diverso em sua essência. A questão homogênea ainda está na esfera do poder, do protagonismo. E isso é algo urgente de se mudar. Como um homem com deficiência e sendo parte de uma minoria gigantesca, essa pauta é a que mais me mobiliza hoje pessoalmente, mas eu não me desconecto de nenhuma outra. Os direitos e as conquistas das mulheres, dos negros, dos indígenas, da população LGBTQIAPN+ (da qual também faço parte) e da desigualdade social também estão no meu ideal de um mundo digno e justo. E não tenho dúvidas de que, quanto mais olharmos uns para os outros com mais empatia e lutarmos juntos, essa homogeneidade tem mais chance de se dissolver e se pulverizar.
Com seus projetos como “Representa” e o documentário “Corpolítica”, você vai além do discurso e fomenta a ação pela representatividade. Olhando para os avanços e os desafios atuais, qual o passo mais crucial que precisamos dar para que as artes e a política sejam verdadeiramente reflexos da nossa diversidade?
Não tenho dúvidas de que a representatividade é a ferramenta-chave das mudanças que precisamos. E não podemos nunca descansar ou nos iludir a cada conquista. Colocamos as duas primeiras mulheres trans na Câmara dos Deputados, mas veja: de 2020, quando gravei Corpolítica e investiguei a participação LGBTQIAPN+ na política institucional, para o ano de 2022, quando tivemos Erika Hilton e Duda Salabert eleitas, a participação percentual política LGBTQIAPN+ se manteve estagnada em 0,16%. É necessário escrever em capslock e gritar: 0,16%. Isso é ínfimo. E está diretamente associado ao fato de que nenhum direito ou proteção civil LGBTQIAPN+ passou até hoje pelo Congresso. Tudo que essa comunidade conquistou, que é muito pouco ainda e muito recente, só existe por conta do Judiciário. E é por isso que é fundamental que as instituições se mantenham laicas, porque a sociedade não pode de jeito algum ser regida por religião. Quando Bolsonaro é eleito e indica um “ministro terrivelmente evangélico”, como o fez com a indicação de um pastor, o André Mendonça, para o Supremo Tribunal Federal, isso é uma derrota para o Brasil enquanto sociedade.
Mas a representatividade, como mostro em Corpolítica, não basta. Fernando Holiday e Thammy Miranda, pessoas LGBTQIAPN+ eleitas no mesmo pleito que acompanhamos, simplesmente ignoram suas próprias existências em defesa de uma corrente ideológica que mira um revólver para suas próprias cabeças. Quanto à arte, a equação não é muito distante. Muitas narrativas seguem equivocadas porque o poder, a tomada de decisão e o dinheiro ainda estão concentrados no mesmo grupo em que se fundamenta o poder nesse país: homens cis, brancos e de uma posição social privilegiada. Estamos em 2025 e a novela das 9 interpretado por um ator sem deficiência fingindo ter paralisia cerebral e ser cadeirante. Há não muito tempo, Leandro Hassum fez um filme produzido pela Netflix em que utilizou de recursos especiais para interpretar um homem com nanismo em um roteiro grotesco que reforça estereótipos do humor que me violentam até hoje. O caminho é longo quando falamos de pessoas com deficiência nas artes. Muito, mas muuuuito distante de algo que possamos considerar razoável. Mas celebro Rosane Svartman, autora de “Vai na Fé” e de “Dona de Mim”, e Carolina Santos, uma mulher com deficiência que colabora com a dramaturgia. Em “Dona de Mim”, sua mais recente novela, temos dois personagens com deficiência interpretados por atores com deficiência e com narrativas que não passam por superação nem melodrama.
A música pode ser uma poderosa contadora de histórias. Que tipo de música, artista ou movimento sonoro você sente que melhor traduz ou acompanha a luta por representatividade, a força das narrativas que você busca construir, ou a urgência das vozes que precisam ser ouvidas hoje?
Pensando em pessoas com deficiência, diria que o pianista e maestro João Carlos Martins é uma figura importante para o movimento, ainda que faça parte de uma música ainda muito elitista, que é a música erudita. O Herbert Vianna com os Paralamas do Sucesso também se tornou uma referência importante, ainda que pouco fale publicamente sobre isso. Mas, num campo mais largo, temos outras pessoas muito inspiradoras no campo da representatividade. A Liniker, que já tive oportunidade de dirigir um clipe, é um exemplo grandioso e incrível. A Catto, Gloria Groove e Pabllo Vittar, também. Mas não tenho como não falar de um dos homens mais importantes, e tão importante para tantos homens gays nesse Brasil, que é Ney Matogrosso. E Madonna. Tudo que eles fizeram e ainda fazem na arte e em cima do palco libertou milhares de homens gays. Sou completamente apaixonado pelos dois e por tudo que produziram em mim.
O “PCDPOD” se tornou um espaço fundamental para amplificar as vivências e perspectivas de pessoas com deficiência. Qual foi a entrevista ou a descoberta que te deu ainda mais clareza sobre a potência desse diálogo?
Ai, são tantos episódios, e todos têm uma força imensa. Mas eu citaria duas, talvez, que considero bem importantes. Nosso programa de estreia foi com a Lelê Martins e a Laís Souza, duas pessoas com deficiência que sentem diariamente as questões práticas da falta de acessibilidade nas ruas e na arquitetura como as cidades foram pensadas. Ambas se tornaram pessoas com deficiência após diferentes acidentes. Porém, ambas viviam realidades sociais muito opostas. A Lelê morava em favela e foi atendida no sistema público quando teve sua perna amputada, enquanto a Laís Souza teve condições muito melhores, foi tratada com todo suporte de um hospital particular com médicos de ponta dos Estados Unidos. Apesar da distância social, as duas se encontraram e se aproximaram em diversas questões, porque no fundo estamos falando da realidade de pessoas com deficiência.
Outro episódio muito emocionante e pessoalmente muito importante para mim foi o encontro com Jota Marques e o Gigante Léo, no episódio que falou sobre humor e educação. O Gigante, por muito tempo, fez show de stand-up em que fazia piadas autodepreciativas, porque era a única forma que o humor abria as portas para ele e é o espaço que as pessoas veem as pessoas com nanismo: a fantasia, o ridículo, a violência física que os programas de auditório promoveram. O Jota é um homem preto da Cidade de Deus, um comunicador popular que diz uma frase que reverbera até hoje em mim: “a educação me salvou, mas ela também me matou”. Qualquer pessoa com deficiência vai entender o peso e a realidade que essa fala tem. Porque é na escola, no humor do fundão da quinta série e no corpo docente quase sempre despreparado para lidar com as diferenças que reside uma grande parcela do desastre que vivemos em sociedade. Por isso é tão repugnante quando vemos pessoas que reproduzem esse humor e essa violência da quinta série chegarem à presidência da República. Sempre digo que o pior legado de pessoas como Bolsonaro e Trump é a institucionalização da violência em seus discursos e piadas. Isso nunca poderia ser digno de ocupar um espaço dessa importância.
Como um contador de histórias que transita por diversas plataformas, de onde vêm suas principais fontes de inspiração para desenvolver seus projetos e para construir narrativas que sejam ao mesmo tempo críticas, sensíveis e impactantes, talvez fugindo de fórmulas prontas ou do que já é esperado?
Eu sempre acredito e vou acreditar no diálogo e no afeto. Na denúncia da injustiça com braços abertos para as mudanças. A conversa é fundamental. Estamos gritando com dedos histéricos na internet e nas ruas e esquecendo que um mundo com bilhões de pessoas precisa aceitar e respeitar todas as diferenças. Lembrando, no entanto, que é preciso regular, sim, a liberdade de expressão. Isso não é censura, é ferramenta de convívio com a sociedade. A internet não pode ser terra de ninguém, nem o humor pode ser terreno livre para fazer o que quiser. Big techs como o X (antigo Twitter), empresários como Elon Musk e comediantes como Léo Lins precisam ser regulados, autuados e, se não respeitarem a lei, serem presos, sim. Crimes de ódio estão sendo plantados e difundidos ali por trás dessas pessoas.
No entanto, tem muita gente que me inspira e me movimenta artisticamente. Artistas como Viola Davis, Michaela Coel, Paulo Vieira, Ryan O’Connell, Clayton Nascimento, o escritor Édouard Louis, os músicos Rico Dalasam e Liniker, a escritora Conceição Evaristo e a deputada Erika Hilton são alguns exemplos de pessoas que ressignificaram suas dores, produziram e produzem transformações práticas na vida de muita gente através da arte e da política, e em primeira pessoa. Reescrever a dor é de uma importância imensa. É isso que me faz acordar todo dia.
Fotos: Flora Negri
Links: Pedro Henrique França
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Documentário Corpolítica