
A beleza do erro e o poder do banal nos olhares de Ivi Maiga Bugrimenko e Ivan Nishitani no Novas Frequências 15 anos.
A noite é mais do que o espetáculo óbvio. É sobre as brechas, os vultos, a beleza do banal. É uma arqueologia da memória. Este é o território de Ivi Maiga Bugrimenko e Ivan Nishitani. O trabalho dos dois fotógrafos é a definição do processo artesanal, a captura do imprevisto analógico. É essa a tese de No Raiar da Noite, exposição que integra a programação de 15 anos do Festival Novas Frequências. A mostra, com curadoria de Chico Dub, reúne cerca de 50 imagens da dupla e ocupa o porão do Museu Solar Grandjean de Montigny (PUC-Rio) a partir de 14 de novembro. Como parceiros do festival, mergulhamos fundo nessa tese em uma conversa com os dois fotógrafos e o curador sobre essa década de resistência e a ideia de que toda festa é, no fundo, a mesma festa. Confira abaixo algumas fotos da exposição, a playlist conjunta “A Memória da Pista” (co-curada pelos fotógrafos) e a conversa completa com o trio.
Lísias Paiva, editor-fundador
Para Ivi Maiga Bugrimenko
Ivi, seu processo é singular. Você começou de forma autodidata com a câmera analógica do seu pai. Como esse início, tão intuitivo e pessoal, moldou o seu olhar individual sobre a noite?
É uma ótima pergunta, porque eu penso bastante sobre isso! O fato de eu ter começado a fotografar totalmente por acaso, dentro de um processo de luto, me permitiu experimentar muito. Como eu nunca tive pretensão de me estabelecer como fotógrafa, esse olhar foi sendo construído através do tempo, da experiência e da persistência.
Eu não era frequentadora habitual de festas de música eletrônica até 2016, quando conheci um grupo de amigos muito queridos que passaram a me levar pra esses rolês. A câmera estava sempre comigo, então foi bem natural que todo aquele estímulo sensorial chamasse minha atenção. Eu acho que eu estava na hora certa, no lugar certo, sabe? Depois de um tempo eu já sabia que tinha encontrado algo que eu procurava há muito tempo ali, na fotografia. Foi um encontro entre mim e a câmera, as pessoas, a música e o momento bastante politizado das festas independentes lá no comecinho.
De lá pra cá a noite mudou bastante, eu mudei bastante, mas eu fico feliz de saber que ao longo dos anos eu fui construindo um corpo de trabalho que vai além da estética e funciona também como documento de uma época. É muito gratificante entender com distanciamento algo que começou espontaneamente e se estabeleceu dentro do nosso cenário de festas. Hoje eu vejo essa influência nas pessoas mais jovens, que estão começando a entrar nesse mundo. A noite é fascinante e vai sempre atrair olhares de quem está atento a ela. É um campo muito aberto para se desenvolver como artista e eu agradeço sempre por ter tido o privilégio de fazer parte e documentar um desses momentos históricos da cultura noturna do Brasil.
O seu livro, VIDACOBRA, é um trabalho muito potente. Como você equilibra o seu olhar ao fotografar o íntimo (seu cotidiano) versus fotografar o coletivo (a energia caótica da noite)?
Olha, eu ainda não sei se eu equilibro muito bem isso hahaha.Como eu tinha dito, eu nunca separei o que era festa, o que era vida, o que eram os amigos, a família, sabe? Eu só fui experimentando e gostando bastante dos resultados do que eu estava fazendo e faço. Esses registros do livro vieram muito desse processo de lidar com a perda do meu pai e os problemas familiares que vieram depois disso. Minha maneira de lidar com tudo foi saindo muito, estando muito nos lugares, com meus amigos.
Agora que eu me entendo mais como uma profissional da fotografia, que também tenta se estabelecer como artista, eu tenho pensado mais sobre essa separação. Sobre como estabelecer práticas para manter meu olhar estimulado, porque quando a gente passa a ganhar dinheiro com algo, essa coisa pode mudar de lugar dentro da gente. Isso é algo com que eu me preocupo, pois realmente não me interessa.
Talvez meu método atual para deixar trabalho e arte um pouco separados seja não me deixar estagnar por um formato ou linguagem. Eu tento me colocar alguns desafios, aprender coisas novas, sair da minha zona de conforto. E isso sempre parte dos meus projetos mais íntimos. É claro que é ótimo me sentir segura com o que eu faço, porque eu levei muitos anos para me sentir assim com a fotografia. Mas é importante pra eu sentir alguma liberdade criativa e não me deixar seduzir pela tentadora opção de virar uma cópia de mim mesma.
Para Ivan Nishitani
Ivan, você também encontrou sua voz no analógico. O que o processo analógico, com suas limitações e ‘erros’ bem-vindos, te oferece que a perfeição do digital talvez esconda?
Acho que é uma questão de perspectiva, de um ideal meio comum de que o “perfeito” é o que está sob controle ou que pode ser previsível, revisto e refeito sob a ótica desse ideal, mas pra mim é justamente o contrário. A imprevisibilidade da fotografia analógica sempre foi um recurso, acho que desde o começo eu entendi e assumi essa estética e tentei propor que as pessoas enxergassem essas imperfeições e limitações como algo interessante. Pra mim a graça e a beleza sempre estiveram justamente nesses resultados inesperados e ‘fora de controle’, meio como é a festa também.
Seu trabalho parece buscar a beleza na banalidade e no não convencional. O que você enxerga nos momentos comuns da noite, nas brechas, que a maioria das pessoas, focadas no espetáculo, talvez deixe passar?
Eu fotografo o que eu reparo, o que me chama a atenção… e o que tá dado é o que todo mundo normalmente vê, por isso eu tento caçar essas coisas que talvez passem despercebidas ou que não são obviamente “uau”… é uma tentativa de fugir de um senso meio comum do que se espera enquanto fotografia de festa. Acho que usar menos flash e horizontalizar a perspectiva das fotos foram duas escolhas aparentemente banais que eu fiz pra tentar aproximar mais aquelas imagens da realidade, trazendo o espectador ainda mais perto daquela atmosfera… cabos, vultos, borrões, cantos sujos, tudo isso conta história.
Para Chico Dub
Chico, a exposição chega em um momento importante, em que a música eletrônica é vista como um fenômeno cultural, não só como festa. Qual é a história central que você quis contar ao unir o olhar tão intimista da Ivi com a estética mais crua do Ivan para refletir sobre essa última década?
Desde 2019 eu tenho vontade de fazer uma exposição de fotografias sobre a noite. Cheguei a conversar com alguns fotógrafos (entre eles a Ivi), montei um projetinho e fiz algumas tentativas nos editais da vida, que, infelizmente, não avançaram. Daí no ano passado, convidei a Ivi para fotografar o Novas Frequências, nos aproximamos mais, e em uma das conversas ela comentou que estava desenvolvendo um projeto de exposição justamente com o Ivan — que, aliás, havia sido a sugestão dela para dirigir o filme-documentário que fazemos todos os anos sobre o festival. Me ofereci pra fazer a curadoria (como não, né?) e aqui estamos nós três, um ano depois.
Essa primeira versão de No Raiar da Noite (alô, galerias de SP! alô, Sesc! risos) foi completamente moldada pelo espaço que vamos ocupar. Parece até ironia do destino, mas o local escolhido pelo curador do Museu, o Cadu, foi justamente o porão: um ambiente escuro, úmido, frio e deliciosamente mofado, com um charme muito próprio. Diante dessas condições e da área reduzida, optamos por uma seleção mais enxuta, em torno de 50 imagens, muitas impressas em formatos com estética de lambe-lambe, um material que, além de resistir melhor à umidade, também evoca a própria divulgação das festas nas ruas.
Em geral, registros de festa seguem uma linha mais documental: quem tocou, quem performou, quem foi, como era a luz, o palco, a cenografia… Eu quis propor outra narrativa e fiquei muito feliz quando percebi que a Ivi e o Ivan estavam pensando mais ou menos a mesma coisa — criar um embaralhamento proposital de imagens, tempos e sensações como se estivéssemos afirmando que, no fundo, todas essas festas são a mesma festa. Uma experiência coletiva e anônima, que poderia acontecer em qualquer lugar, em qualquer noite.
Algumas obras que fazem parte da exposição No Raiar da Noite













Festival Novas Frequências 15 anos
“No Raiar da Noite: 10 anos de registros da cena de festas independentes do Rio e de São Paulo” reúne cerca de 50 fotografias de Ivi Maiga Bugrimenko e Ivan Nishitani, realizadas entre 2015 e 2025.
Abertura: 14 de novembro, 19h (com DJ sets de ØB§CÜRE e Quimera b2b Pessanha).
Visitação: 14 de novembro a 7 de dezembro.
Local: Museu Solar Grandjean de Montigny (PUC-Rio)
Programação completa no site Novas Frequências
Apoio: deepbeep
Acompanhe o trabalho dos artistas
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