
Para a artista sonora Marta Supernova, a pista de dança é um espaço político, o corpo é o principal instrumento e o som é uma ferramenta para criar comunidade.
Marta Supernova é uma artista sonora que trata a pista de dança não como um lugar de escapismo, mas como um laboratório de sensações. Figura central da cena experimental carioca, seu trabalho com ruído, drone e a desconstrução de ritmos como o techno e o funk busca investigar como o som mexe com o corpo, provoca ideias e cria conexões. Ela se interessa pelas bordas, pelos “escombros sonoros”, e pela função política do underground como um espaço de acolhimento e experimentação real, longe da perfeição. Na conversa, Marta fala sobre a surpresa como ferramenta, a formação de “hipercomunidades” e o poder de uma arte que não precisa se explicar, apenas atravessar.
Marta, seu trabalho parece operar mais no campo da arquitetura sonora do que da música convencional. Você esculpe com ruído, drone e frequências que desafiam o conforto. Qual é a experiência (física, mental, emocional) mais urgente que você busca construir ou demolir através do som?
Acho que, como DJ, estou sempre buscando criar novas sensações através da música. Me interessa entender como o som mexe com o corpo, como ele desperta sentimentos, provoca ideias e até muda a forma como a gente percebe o momento.
Hoje, minha principal motivação é juntar minha visão artística, política e filosófica com algo muito direto: o corpo, a presença. Gosto de pensar em como o som pode envolver, encantar, até seduzir — não só com coisas bonitas, mas com uma variedade enorme de emoções.
No começo da minha trajetória, eu me questionava muito sobre isso: será que a arte tem que ser bonita? Será que é esse o objetivo? Isso me gerava insegurança. Com o tempo, entendi que o som é uma ferramenta poderosa porque ele não precisa explicar nada — ele simplesmente toca, provoca, atravessa. E isso abre espaço para explorar muitos sentimentos, mesmo os desconfortáveis.
Pra mim, criar também envolve desconstruir, demolir. Mesmo quando uso músicas ou estilos mais conhecidos, gosto de propor algo novo, inesperado. Meus sets nunca são iguais. Eu sempre improviso, sentindo a pista, ouvindo o ambiente, deixando a intuição guiar cada escolha. Essa espontaneidade traz surpresa, e a surpresa mexe com o público de um jeito especial. Quando algo inesperado acontece, a gente se conecta de forma mais viva, mais humana. A pessoa se desloca do que já conhece e entra numa experiência nova, mais presente, mais intensa. E é aí que mora a mágica: quando o imprevisível aflora também o imprevisível dentro de quem está ouvindo.
Você deconstrói gêneros como o techno, o funk e o industrial, extraindo seus elementos mais crus e viscerais. O que você procura nos escombros desses ritmos?
Sou uma pessoa curiosa e inquieta — isso também se reflete no meu jeito de fazer música. Tenho um interesse muito forte por aquilo que é misterioso: por que certos sons, estilos ou gêneros musicais me atraem tanto? Gosto de me defrontar com a amplitude, com a imensidão que existe dentro de cada ritmo e nas culturas por trás deles.
Minha relação com a música é muito direta e intuitiva. Eu crio a partir do corpo, das sensações, dos instintos. Tudo que faço — seja um DJ set, uma música autoral ou uma trilha — nasce desse lugar muito cru e visceral. Embora eu seja também extremamente metódica e racional na organização e estruturação do meu trabalho.
Costumo buscar aquilo que sobra, que fica nas bordas. Me interessam os restos, os escombros sonoros — aquilo que muitas vezes passa despercebido, mas que carrega uma força própria. Tenho uma mente muito abstrata, então nunca me senti confortável com classificações rígidas. Eu demoro pra entender a utilidade de certas caixinhas, desde criança. Sempre ficava intrigada com alguns conceitos que não faziam sentido pra mim na escola, e vasculhava até entender.
Me atrai justamente o que está entre os estilos: o que faz uma música deixar de ser techno para virar house? O que transforma um funk em afro-funk ou afrobeats? São essas sutilezas, essas pequenas partículas rítmicas — como as batidas, as claves, as cores dos timbres, os sons quase imperceptíveis, os detalhes — que mais me chamam a atenção.
Pra mim, tudo isso é o fascinante nas linguagens. E é a partir dessas linguagens que se criam experiências, sensações e conexões na pista de dança. É assim que se formam afetos e até comunidades. Gosto das zonas de encontro, das misturas, dos limites porosos entre um som e outro — entre o barulho e a melodia, entre o que é considerado música e o que não é. Esses lugares indefinidos, essas bordas, dizem muito sobre mim — como artista e como pessoa.
A pista de dança nem sempre é um lugar de euforia ou escapismo fácil. Muitas vezes, é um espaço de tensão, imersão e até confronto. Qual é a sua intenção para o corpo que dança ao seu som?
Durante a pandemia, uma amiga me disse que o que mais fazia falta para ela eram os espaços de festa — lugares de celebração, de contato físico, de troca entre as pessoas. E isso me marcou muito, porque também sinto que a pista de dança é um espaço essencial.
A pista é diferente de tudo que a gente vive no dia a dia. Não é trabalho, não é escola, não é uma obrigação. É um lugar onde você encontra outras pessoas por um motivo simples: o prazer de estar ali. Onde seu corpo pode se mover, se expressar, se aproximar de outros que possivelmente você não conheceria em outros espaços.
Hoje em dia, com os celulares, com tantas distrações, muita coisa mudou na forma como a gente vive as festas.Ainda acredito na potência da pista de dança como um espaço de liberdade, saúde e encontro. E é isso que mais me move como DJ: poder conduzir as pessoas a viverem uma experiência verdadeira, intensa, cheia de presença. Minha intenção é essa: criar um ambiente onde quem está dançando se sinta vivo, desperto, tocado. Não precisa ser algo grandioso ou revolucionário — embora às vezes até seja —, mas sim algo que dê sentido. Um momento de prazer, de descoberta, de deslocamento, de conexão.
Eu toco quando as pessoas não estão trabalhando. É o momento da pausa, da brincadeira, da curiosidade. E eu levo isso muito a sério. Quero guiar as pessoas a um estado de transe, de catarse sensível — onde sentimentos vêm à tona, onde há espaço tanto para a beleza, quanto para introspecção e por vezes euforia. Mais do que só fazer dançar, penso na pista como um lugar de formação de comunidade. Um lugar onde pessoas diferentes se encontram, se afetam, se reconhecem.
Antes de ser DJ, eu já trabalhava com articulação comunitária no campo da arte contemporânea e hoje continuo isso através da música. Me interessa criar encontros verdadeiros, provocar conexões inesperadas. A pista é um espaço político e afetivo. É uma forma de cuidar da saúde coletiva também. É trabalhar o invisível, mas a gente sente. É poderoso porque toca o que temos de mais humano: as emoções, os sonhos e as relações que criamos ali, juntos.
Você é uma figura central na cena experimental. Em uma era de hiper-visibilidade e monetização de todas as formas de arte, qual é a função política e estética do underground hoje?
Acho que mesmo o underground, que muitas vezes é visto como uma cena alternativa, não escapa da realidade de precisar dialogar com a visibilidade e com a questão do dinheiro. Somos artistas profissionais — e precisamos viver disso. Precisamos pagar contas, cuidar da saúde, ter tempo para as relações pessoais, enfim… viver também fora do palco.
Tenho pensado muito sobre isso: como manter o equilíbrio entre manter uma cena viva, criativa, e ainda conseguir sobreviver de forma digna. Acho que todo artista pensa sobre isso.
O underground tem muitas funções importantes. Ele é um espaço que provoca o mainstream, que força o centro a se mover. É onde surgem novas ideias, novas estéticas, novas formas de viver a cultura. É onde se revelam DJs, sonoridades, roupas, modos de dançar e de se encontrar.
Ele também desloca o foco dos grandes centros para outros lugares — muitas vezes com histórias esquecidas ou pouco valorizadas. Então o underground tem essa força de investigação, de abertura de caminhos. Ele é, antes de tudo, um espaço de experimentação. É ali que novas linguagens da música eletrônica ganham forma, novas comunidades se estruturam, outras formas de arte aparecem. É um espaço de expansão, de acolhimento, de construção coletiva. Mas pra que isso aconteça, é essencial aceitar os processos instáveis da arte: o erro, o que ainda não está pronto, o que desafia o que é considerado “certo”.
O underground precisa ser esse lugar onde se pode tentar, errar, testar — onde não é tudo sobre perfeição, mas sobre criar experiências que expressem as vivências reais de quem está ali. E pra isso, nem sempre é preciso estar em todos os holofotes. Não é sobre hipervisibilidade. É sobre ter uma hipercomunidade: forte, conectada, presente. Porque é nessa rede de apoio e trocas, atritos, que as coisas realmente acontecem.
Seu garimpo musical vai além do convencional. Onde uma exploradora sonora como você encontra novas texturas e inspirações?
Eu estou o tempo todo em contato com arte e não só com música. Sou artista plástica, sou graduada em cinema, e já trabalhei por muitos anos com projetos que envolvem arte e comunidades. Então meu olhar está sempre atento ao que me provoca sensações novas, diferentes.
Gosto de pensar mais nos sentimentos do que nas emoções. Porque os sentimentos, muitas vezes, nem têm nome — são coisas que a gente sente e não sabe explicar. E é isso que me guia na hora de criar: essas sensações que mexem comigo, que despertam curiosidade, que me assustam, me animam, me tiram do lugar. Confio muito no meu corpo nesse processo. Às vezes, é uma textura sonora, uma batida, uma vibração no ar que mexe comigo e vira arte. Nem todo som causa isso — mas quando o som me toca de verdade, o corpo responde, e é daí que nasce minha criação.
Tenho uma ligação muito forte com os ritmos, com a percussão. Toquei por muitos anos em escola de samba, e isso me deixou muito conectada com a riqueza rítmica da nossa cultura afro-diaspórica. Me interessa o que está sendo produzido hoje na África, nas comunidades negras e indígenas, em toda a América. Fico fascinada em ver como os sons viajam pelo mundo, mudam, se transformam, criam novos gêneros. Isso me dá um prazer enorme. É o que me dá vitalidade, me lembra por que vale a pena viver. O que mais me toca é ver o ser humano engajado com a vida — não com fama ou dinheiro, mas com a experiência de viver de verdade. De trocar, criar, conviver com doçura.
A arte e o som me mostram o lado bonito e sensível da humanidade. Me fazem lembrar do que a gente tem de melhor: a capacidade de sentir, de imaginar, de cuidar, de criar coisas que tocam o outro. É a beleza do humano. Isso é o que me move.
Fotos: Robert Schwenck