Luciana Paes

Luciana Paes

Luciana Paes e a coragem da ambiguidade. Onde perdoar o outro é o maior exercício que se pode fazer com o próprio corpo.

Luciana Paes não tem uma carreira, mas um ato contínuo de rebeldia, pois entrou na profissão para viver mais vidas do que apenas uma. Para ela, atuar é o maior exercício de perdão que se pode fazer com o próprio corpo, uma vez que é preciso habitar e defender o personagem que se odeia. Sua busca é pela ambiguidade que o mundo polarizado rejeita, provando que a diferença entre o trágico e o hilário é apenas uma questão de tempo. Acompanha a conversa a “Playlist de um Camaleão”, uma seleção de faixas que reflete a diversidade de energias que ela acessa para construir cada nova pessoa. A conversa completa sobre a cura que nasce na sombra do personagem e esta playlist exclusiva estão logo abaixo.

Lísias Paiva, editor-fundador

Luciana, a sua carreira é marcada por uma versatilidade impressionante, indo da comédia rasgada ao drama denso com uma entrega total. O que te atrai nessa capacidade de ser tantas pessoas? É o desafio de explorar os extremos da experiência humana?
Ator geralmente é um rebelde e um ambicioso, né? Eu acho que eu entrei na profissão um pouco para ver se eu conseguia viver mais vidas na minha vida do que uma só. Você tem a chance de mergulhar em outras realidades que não são a sua. Eu acho que eu tenho uma cara meio tragicômica, e é um pouco como eu vejo a vida. Então, é nesse lugar entre o trágico e o hilário.

O exercício de atuar é um dos lugares mais generosos em relação ao autoconhecimento. O teatro é um dos poucos lugares onde a sua sombra e a sombra do personagem (aspectos com que ninguém quer lidar, como fazer um assassino ou um corrupto) são saudados. Você não precisa fugir dessas emoções, você só precisa saber que elas existem e habitá-las nesse lugar de auto-observação. Isso é uma cura.

Eu considero um personagem um dos maiores exercícios de perdão que você pode fazer. Quando a gente fala de alteridade, de se colocar no lugar do outro, você pode ir na psicologia ou na filosofia, mas na atuação você tem que virar o outro. Você tem que habitar esse lugar com o seu corpo. É uma maneira de você perdoar os outros dentro de você.

O corpo parece ser uma ferramenta central na sua construção de personagens. Como você encontra a “chave” corporal de uma nova pessoa — o jeito de andar, o olhar, a voz? É um processo que começa de dentro para fora ou de fora para dentro?
Eu trabalho muito com o meu corpo. Eu fiz um treinamento que se chama BMC, Body Mind Centering, que usa o sistema de você estudar a anatomia e os sistemas do corpo. Eu trabalho com a dosagem dos centros: essa pessoa é mais racional, mais emocional ou mais sexual? Qual centro a move? Por exemplo, quando eu fiz Animal Cordial, para não entrar numa psicologia desgastante, eu acionava a energia do meu rim e entrava no estado físico do susto.

Esses fluxos reverberam na voz. Eu amo ouvir rádio, eu acho que a voz é um dos lugares onde as pessoas estão mais nuas. É possível ler a voz de alguém, entender se ela pontua com silêncio ou se é cheia de vírgula e nunca termina. Você pode entender que o fluxo de como aquela pessoa fala e como ela pensa se reflete também através da voz. Então, eu já fiz várias criações através de voz.

A composição pode vir de fora para dentro ou de dentro para fora. Depende do personagem. Tem alguns que o melhor caminho é fazer o mais verdadeiro possível, e só de emprestar essa humanidade você já entra em camadas. E tem os que eu faço por composição, por observação, tentando pegar inspirações. Eu sempre intuo que eu vou conseguir descobrir coisas que eu não sei sobre alguma natureza humana, e isso me instiga mais.

Você tem um timing cômico genial, mas também uma profundidade dramática imensa. Qual é a diferença no processo de preparação para fazer rir e para fazer chorar? A energia criativa vem do mesmo lugar?
Eu acho que a diferença entre a comédia e o drama é o tempo. Eu acho que tudo é muito musical. A comédia é mais um set, é mais horizontal, é sobre o jogo e o bom humor. Ela não precisa de tanta concentração interna. É como se você fosse jogar vôlei. O drama é o oposto, exige mais silêncio, mais concentração.

Eu internamente não consigo saber a diferença. Eu tento entender qual seria a maior dor do personagem cômico se algum dia eu precisasse trazê-la à tona. Eu acho que a separação da comédia e do drama é uma coisa um pouco que o mercado precisou fazer para deixar mais fácil de digerir, mas na vida mesmo a gente navega entre essas duas instâncias o tempo inteiro.

O deepbeep se inquieta com o mundo dos algoritmos, que muitas vezes nos empurra para as mesmas referências. Como você, como atriz e espectadora, faz para alimentar seu repertório? Como você descobre os filmes, as peças ou as músicas que te surpreendem e te inspiram a criar, fugindo do óbvio?
Eu voltei a ler livros que estava parada. Eu acho que a literatura realmente é um lugar onde você ainda consegue entrar em contato com pensamentos mais profundos e originais. Isso foi meio a minha maneira de me revoltar com o algoritmo.

É quase uma força que você tem que fazer de se perguntar: o que eu acho? Também esse lugar de você prestar atenção no que genuinamente gera interesse. Amigos e sua rede de contatos ajudam muito, né? Você vai encontrando os seus nichos para se alimentar. Quando você lê um roteiro, sempre tem um caminho mais óbvio a se seguir. Eu sempre fico pensando com estratégia: que caminhos que não foram navegados, que caminhos seriam menos óbvios. Eu tenho essa busca.

Mesmo em personagens extremos ou caricatos, você sempre parece encontrar uma verdade humana. É essa a sua busca como artista? Encontrar e revelar a humanidade que existe nos lugares mais inesperados?
Isso é uma busca mesmo. Eu acho que a arte vem para revelar camadas de humanidade que a gente está perdendo, e a ambiguidade, que é outra coisa que a gente está perdendo nesse mundo polarizado. Você não pode mais ser ambíguo, e isso é um dos piores crimes que podem acontecer para a interpretação.

As nossas emoções, elas são muito menos lineares do que a gente gostaria. A linearidade é que cria o drama, mas nós somos mais como crianças, que ora estão chorando, ora dão risada. A gente só criou essa linha narrativa de coerência para conseguir interagir em sociedade.

Para mim, todos os personagens merecem viver. Mesmo em personagens mais caricatos, eu sempre tento honrar a pessoa que ele seria. Porque certamente existe alguém ali que vai se identificar.

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