Fernanda Abreu

Fernanda Abreu

Trinta anos depois, Fernanda Abreu, a Garota Sangue Bom ainda prova que quando o processo é firme, o tempo só acompanha.

Fernanda Abreu nunca se moveu como quem está só passando. Desde o início da carreira solo, decidiu assumir o controle do som, da imagem e do ritmo, num momento em que essa autonomia ainda não vinha pronta de fábrica. Da Lata nasce dessa escolha. Um disco que tratava conceitos como prática, não como discurso, e entendia corpo, cidade, feminismo e batida como partes do mesmo pensamento, sem separar a pista da ideia. Revisitar esse trabalho trinta anos depois ajuda a entender por que ele ainda funciona. Fernanda fala de um tempo em que criar exigia errar sem pedir desculpa, testar sem garantia e sustentar processos longos, cheios de gente e de atrito. Um jeito de trabalhar que hoje soa quase fora de época, mas que segue sendo o único capaz de produzir obra com densidade real. O documentário, o vinil, o livro e a curadoria da própria memória reforçam essa lógica de continuidade, não como arquivo, mas como matéria ainda em movimento. Encerramos o ano com essa conversa e com a playlist “DNA do Groove”pensada para dançar, porque o pensamento da Fernanda sempre passou pelo corpo antes de virar conceito. Um fechamento de ciclo que não pede aplauso nem nostalgia. Pede pista.

Lísias Paiva, editor-fundador

Fernanda, este projeto revela você como uma curadora da própria obra, algo raro na música brasileira. De onde vem essa consciência sobre a importância de preservar e revisitar a própria memória criativa?
Desde 1986, ano em que a formação original da banda Blitz se dissolveu, tomei as rédeas da minha carreira solo. Decidi quando seria o melhor momento para minha estreia e que tipo de som e imagem eu queria imprimir. Desde então, é muito natural para eu liderar e dirigir meus passos nessa caminhada.

“Da Lata” foi um álbum denso, conceitual. Como você imagina que um projeto com essa complexidade seria recebido hoje, em uma cultura guiada por playlists automáticas e faixas virais?
É quase impossível. Esse álbum foi criado em 1995, num mundo analógico onde a indústria fonográfica ainda podia acreditar num projeto audacioso como o “Da Lata”. Hoje, com o consumo via plataformas digitais, acredito que a indústria e a cadeia da música em geral estão mais “aprisionadas” pelas fórmulas e pelos algoritmos que ditam o que faz sucesso ou não.

Montar um documentário sobre si mesma é um ato de edição. Qual foi a decisão de roteiro mais difícil nesse processo? E ao revisitar a Fernanda de 30 anos atrás, o que mais te surpreendeu?
Esse trabalho de direção, edição e montagem do documentário foi de Paulo Severo, que com sua sensibilidade entregou um trabalho muito verdadeiro e consistente. Inicialmente, tínhamos 40 horas de material captado em 1995, e resolvi convidar 33 colaboradores para darem seus depoimentos em entrevistas organizadas pelo jornalista Silvio Essinger. Diante de todo o material, eu e Severo criamos um roteiro, mas a escolha dos takes é mérito dele.

A palavra “lata” no título do disco é cheia de camadas. Como foi brincar com um símbolo tão ambíguo e potente para definir a sonoridade e a atitude do seu trabalho?
Foi uma onda muito boa. Fiquei pensando em vários significados da lata. A “lata” como material precário, porém criativo e a cara do povo brasileiro. A “lata” nas frigideiras que escolhi usar como sutiã já apontava um símbolo feminista, sugerindo que a mulher estava saindo de trás do fogão. “Da Lata” no sentido de criar som da melhor qualidade. E “Na Lata”, com letras de discurso direto, como os radialistas faziam. O conceito estava fechado.

Depois de três décadas, qual é a principal lição ou inquietação que você espera que a obra “Da Lata” continue a provocar em quem a ouve pela primeira vez?
Antes de mais nada, pude observar que o som e as imagens criadas há 30 anos não envelheceram. Eu queria muito contar a história do processo criativo desse álbum, da capa, dos videoclipes e do show/turnê, produzidos na última década do século 20. Revelar esses momentos inéditos num documentário, mas também oferecê-los em suportes físicos (vinil e livro) para a gente pegar com as mãos. Afinal, hoje em dia, em tempos de “nuvem”, nossa relação com objetos artísticos mudou, e nossa relação com o tempo criativo, mais ainda com a IA. O que uma IA pode fazer hoje em minutos exigia muito tempo, tentativas, erros e acertos e a colaboração de um monte de gente. Esse mergulho no universo “Da Lata” me deixou ainda mais convicta de que fazer arte é muito mais sobre o processo do que exatamente sobre o resultado final.

Se uma faixa de “Da Lata” fosse a única lembrança sua daqui a 30 anos, qual você escolheria e o que gostaria que dissesse sobre você e sobre o Brasil?
“Garota Sangue Bom”. Essa música virou minha marca registrada. E a frase que poderia estar na minha lápide: “Dá gosto de ver a inteligência movendo um corpinho como esse”.


Em uma conversa com o duo From House to Disco sobre o remix de Garota Sangue Bom, fica claro que a intenção nunca foi atualizar o que já nasceu afiado. O vocal e a letra permanecem no centro. O deslocamento acontece no instrumental, onde a faixa encontra outra pista sem perder o corpo.

Como elas mesmas explicam, “a nossa prioridade foi o vocal potente da Fernanda Abreu e a letra afiada de Garota Sangue Bom. Seria um desperdício mexer nisso”. E completam: “quando algo é bom de verdade, ele volta. Ele encontra novos espaços, novas gerações, novas formas de existir”.



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Fotos: Mateus Rubim

Agradecimentos: Lupa Comunicação pela parceria e conexão

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