
O antídoto para a beleza normativa: a beauty artist fala sobre o poder do imponderável, a maquiagem como encontro e a busca pela suavidade no olhar.
Fabiana Gomes é uma beauty artist que pensa a beleza para além do pincel. Seu trabalho é um exercício de escuta, um convite para uma relação mais saudável e experimental com a própria imagem, longe das fórmulas normativas do “tem que” ou do “não vivo sem”. Em um mundo guiado por referências literais, ela as usa apenas como ponto de partida, deixando espaço para o imponderável e a surpresa que só podem nascer de um encontro real com a pessoa à sua frente. Crítica afiada da “Instagram Face” e dos padrões que apagam características individuais, ela nos lembra que a tecnologia apenas acelera uma imposição cultural antiga. Nesta conversa, Fabiana fala sobre processo criativo e o silêncio necessário para criar. A prova de que ela “não sabe brincar” vem na playlist que acompanha o papo: criada de forma impulsiva para atravessar uma “super fossa”, a seleção é a trilha sonora perfeita para “lidar com a dor balançando com uma tacinha erguida”. Dê o play!
Seu trabalho vai muito além da maquiagem, é sobre a criação de uma “persona”. Para você, qual é o papel da beleza hoje? É uma ferramenta de autoexpressão, uma forma de armadura, ou uma tela para experimentar novas identidades?
Quando a relação com a beleza se dá de maneira razoavelmente saudável, ou seja, evitando formulações normativas como “tem que” ou o “não vivo sem”, ela pode exercer papel importante no reconhecimento e na experimentação de si. Sou meio ressabiada, para não dizer avessa, quando se enaltece o poder de transformação da beleza no registro de uma negação do que se tem. Talvez um bom uso da palavra “transformação” pudesse justamente estar atrelado às infinitas possibilidades que nosso corpo e nosso rosto oferecem.
Como nasce um look para um desfile ou um editorial? O processo começa com uma referência externa — uma obra de arte, uma música, uma textura — ou com o próprio rosto à sua frente, em um diálogo com a pessoa que será maquiada?
É muito comum trabalhar com mood boards que ajudem a construir uma trama que anime a ideia inicial que se tem do trabalho.
Cabeça de coruja com olhos de camaleão escrutinando os arredores também pode ser muito excitante na busca por inspiração e referências.
Acho que o exercício é fazer uso conceitual da referência, em vez de tentar usá-la de modo literal. Trabalhamos com matéria viva e pulsante, que se move e interage de formas e em tempos diferentes. Nunca é exatamente a situação da referência, nem se repetem as mesmas condições de temperatura e pressão… Melhor deixar espaço para o imponderável, para a surpresa. O trabalho pode ser guiado pela referência, mas nasce do encontro.
A internet e os algoritmos criaram padrões de beleza muito rígidos e virais, como o “Instagram Face”. Como uma artista que sempre prezou pela individualidade, como você enxerga esse movimento? É um desafio para a criatividade ou apenas uma tendência passageira?
Acho que a tecnologia — e as mídias digitais, mais precisamente — amplifica e dissemina essa ideia com mais rapidez, mas a cultura sempre impôs e continua impondo ideais e padrões. Desviando um pouco das nossas bolhas, percebemos que aquela estética que parece massiva aqui não diz nada acolá. Ou seja, ou a gente sai de rolê com olhos frescos, ou engana os algoritmos; as duas opções me parecem boas saídas.
Tratando especificamente da tal Instagram Face, podemos até passar batido pela questão da colagem de traços retirados de diferentes culturas que, individualmente, não são valorizadas pela grande indústria. Mas, quando incorporadas nessa estética de bonecona contemporânea, acabam se tornando desejáveis.
A pergunta mais pesadona que me ocorre é: quais consequências podem haver nesse negócio de apagar muitas das suas características e manipulá-las para caber nesse molde? Molde que as tecnologias mais avançadas permitem copiar de forma ultrarrealista, a ponto de muita gente parecer fruto de produção seriada. De repente, parece que tudo é possível. É? E dá pra mudar o enchimento de modo mágico também? Capaz que com uma pílula…
A música tem um poder imenso de criar uma atmosfera. Em seu processo criativo, que papel a música desempenha? Você usa trilhas sonoras para se inspirar, para criar o “mood” de um trabalho, ou até para se conectar com a personalidade de quem está maquiando?
Essa relação com música às vezes fica séria demais para mim… fico meio obcecada em botar trilha em tudo. Para criar, depende do momento: muitas vezes preciso de silêncio apenas. A música, às vezes, é estimulante demais e acaba competindo com o que precisa sair da cabeça. Depois que o bagulho está garantido, aí sim gosto de tacar o pau na boombox!
Depois que uma pessoa é maquiada por você, qual é a transformação mais importante que você espera ter provocado? É na autoestima, na forma como ela se projeta para o mundo, ou na coragem de experimentar e ser livre?
Nossa! Não sei se lido de modo tão filosófico com o ofício… hahaha. Acho que fico contente quando a pessoa consegue se encarar com mais suavidade e desejo — e sai mais pimpona, inflada com um tantinho de orgulho de si.
Foto: Karine Basílio
Acompanhe o trabalho da Fabiana Gomes
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