De Bergman a Beyoncé. Duda Leite sobre a curadoria sem hierarquia e o videoclipe como cinema de urgência.
Duda Leite não faz distinção entre a vanguarda de Cannes e o pop da MTV. Para ele, tudo é narrativa visual. Jornalista e cineasta, ele traz a bagagem de quem cobriu festivais europeus para dentro do Music Video Festival (m-v-f-), onde atua como curador desde 2012. É por causa desse olhar que o deepbeep apoia o m-v-f-. Compartilhamos a mesma obsessão: tratar o videoclipe não como peça de marketing, mas como arte autônoma. Nesta conversa, investigamos como a curadoria pode criar pontes entre o passado da televisão e o futuro da inteligência artificial. Nossa provocação foi a videolist “O Cinema em 3 Minutos”, que você confere abaixo. A entrevista completa vem a seguir.
Lísias Paiva, editor-fundador
Duda, você cobriu Cannes e Veneza e trabalhou em canais como VH1 e HBO. Como esse trânsito entre o “cinema de festival” e a “cultura pop” moldou o seu ofício de curador? Você busca a mesma densidade num clipe de 3 minutos que busca num longa-metragem?
Durante o período em que cobri os principais festivais de cinema para o Eurochannel, formei meu olhar crítico em relação aos filmes. Sempre tive um olhar bem eclético, gosto na mesma medida dos filmes de Ingmar Bergman, John Waters, Russ Meyer e David Lynch, assim como de Prince, Madonna, David Bowie e Björk. Portanto, meu gosto pessoal e minha curiosidade foram o que moldou meu ofício como curador, sempre me mantendo aberto para inovações em termos estéticos, técnicos e de conteúdo. Acho que o mais importante para fazer uma curadoria é ter um olhar atento, curioso e aberto.
Quanto à segunda parte da pergunta: claro que não! Existem videoclipes bastante densos, assim como existem filmes insípidos, que não têm muito o que dizer. Porém, é muito difícil comparar a densidade de um videoclipe com a de um longa. São experiências completamente diferentes, uma coletiva (o cinema) e outra individual (os videoclipes). Eu amo as duas linguagens.
O que faz um clipe ser histórico para você? Qual é a assinatura visual ou narrativa que separa um vídeo comum de uma obra de arte?
Acredito que o principal é a criatividade, a inovação e a ousadia. Desde Thriller, de Michael Jackson, até Berghain, da Rosalía, passando por Erotica, de Madonna. Videoclipes são pequenos filmes, e quanto mais pessoais, ousados e autorais, mais interessantes. Acredito que o que separa um videoclipe comum de uma obra de arte tem muito a ver com a visão do artista que está por trás das câmeras. Quanto mais original e pessoal, melhor. E também disruptivos. O DEVO, por exemplo, é uma banda surgida na década de 1980 que quebrou todos os padrões dos videoclipes, e seus clipes são certamente obras de arte. Não por acaso, o Gerald Casale fez parte do nosso primeiro júri. Os clipes de Grace Jones dirigidos por Jean-Paul Goude também são obras de arte.
Hoje a imagem é consumida em segundos, na vertical, no celular. O deepbeep defende a atenção plena. Como você enxerga a produção de videoclipes nessa era do TikTok? O formato curto matou a narrativa complexa ou criou uma nova linguagem artesanal que precisamos aprender a ler?
Acredito que ambas as afirmações são corretas: o formato curto matou a narrativa complexa ou criou uma nova linguagem. Existem experiências interessantes no formato vertical e curto, algumas da própria Rosalía, que acredito que é uma artista que sabe usar bem esta linguagem. Quanto à deficiência de atenção das novas gerações, isso é realmente uma questão. Acho que é um desafio cada vez maior para os artistas conseguirem criar um conteúdo chamativo suficiente que os faça ficar parados por mais de 10 segundos em algo.
Como curador do m-v-f-, você assiste a milhares de vídeos. Como funciona o seu filtro pessoal? O que te faz parar o scroll e assistir até o fim? É a técnica, a estranheza, a sincronia?
O que mais me chama a atenção em um videoclipe é a criatividade, ver alguma imagem que eu nunca tenha visto antes, algo novo ou então algo muito bem realizado. Mas também me interesso pela forma como o artista usa o videoclipe para transmitir algo; pode ser uma mensagem ou simplesmente uma estética. Hoje em dia, é cada vez mais difícil algo nos surpreender, com a enxurrada diária de imagens a que somos expostos, portanto, quando algo me prende a atenção, eu já gosto. Pensando em videoclipes com mensagens potentes ligadas à técnica, me vem à cabeça o clipe Until The Quiet Comes, do Kahlil Joseph, que tem uma narrativa fortíssima sobre a violência racial nos EUA, com uma estética belíssima e poderosa. Aliás, o Kahlil já veio a São Paulo como convidado do m-v-f-. Falando em estranheza, não dá para não lembrar dos clipes que o Chris Cunningham dirigiu para o Aphex Twin. Até hoje levo um susto quando revejo.
O clipe é o musical de hoje? Qual é a conversa que você quer provocar ao colocar o videoclipe no mesmo patamar de prestígio que o cinema clássico?
Acho que não dá para comparar o cinema clássico com os videoclipes. E o cinema continua produzindo alguns musicais bacanas, como Rocketman, por exemplo. Minha intenção ao fazer a curadoria do m-v-f- é mostrar que os videoclipes podem ser muito mais do que simplesmente uma peça de marketing no lançamento de um álbum ou de um artista. Existem muitos artistas jovens, independentes, ou mesmo alguns que estão em grandes gravadoras, que ainda se interessam pelo formato e que buscam inovações, sejam elas estéticas ou de conteúdo. O videoclipe é uma forma de arte em si. Basta ver os finalistas do m-v-f- awards, e de festivais parceiros como o UK MVA, por exemplo. Ainda tem muita coisa interessante sendo produzida. Gosto que hoje o formato se expandiu tanto que temos 25 categorias para dar conta de tudo. Este ano, por exemplo, abrimos pela primeira vez uma categoria só para videoclipes feitos em IA. É uma arte em constante transformação. Os álbuns visuais — que, aliás, não são um formato nada novo, já existiam desde os Beatles e os Monkees — estão passando por transformações bem curiosas. O filme Rock Doido, da Gaby Amarantos, é um bom exemplo: uma experiência gravada em plano sequência, passando por vários cenários e climas. Agora estou curioso para saber o que virá pós-IA.
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