
A curadoria como audição coletiva. Dago Donato sobre o estranhamento confortável e a pista que chega sem pressa.
O trabalho de Dago Donato é a prova de que a melhor curadoria nasce da conexão humana. Em um tempo de pressa, seus projetos criam espaços de ‘audição coletiva sem regras’, como define. A pista, para ele, é algo que ‘rola naturalmente’, sem pressão. Seu garimpo é caótico, intuitivo, buscando o ‘estranhamento confortável’, a faixa que faz o público perguntar ‘que porra é essa?’. Convidamos o Dago para uma conversa sobre esse processo artesanal, sobre tocar o que ninguém toca e a beleza de deixar o caos reinar. Nossa provocação foi a ‘Playlist do Garimpo Intuitivo’. A seleção está logo abaixo. A conversa completa vem a seguir.
Lísias Paiva, editor-fundador
Dago, você transita entre a pesquisa musical (o garimpo solitário) e a criação de comunidade (o encontro coletivo). Qual é a relação entre o som e a conexão humana no seu ofício de curador hoje?
Da pandemia pra cá, uma série de mudanças aconteceu na minha vida. Já tinha fechado o Neu e tive que fechar o Breve, depois fiz a curadoria da série The Beat Diaspora ao lado do Chico Dub, que foi uma experiência bastante transformadora e também fechou pra mim um ciclo de quase duas décadas de pesquisa de música eletrônica global. Por fim, teve a adoção do meu filho, que me obrigou a olhar para meus ofícios de outra maneira, num sentido prático mesmo. Sempre trabalhei com música com a ideia de comunidade, no sentido de abrir espaço e criar ambientes pra que a música acontecesse. Nos últimos anos passei a trabalhar com a ideia de conexão, de utilizar o tempo que ficou mais escasso pra trabalhos com gente que eu gosto e admiro. O Encontrão, por exemplo, veio disso. Nasceu de um convite do Ricardo pra eu tocar na Fiel Discos. Em vez de fazer uma tarde com um set meu, chamei meus amigos que também colecionam discos pra uma espécie de audição coletiva sem regras. Cada um toca três faixas e vamos nos revezando. Acabou que deu certo e vamos comemorar nosso terceiro aniversário dia 15 no Porta. Também tenho o Frisante ao lado do Guarizo e a SDDS Neu, junto com o Guarizo e o Guab. Estou conversando com o Trepanado de resgatar um projeto nosso chamado Huracán 2000, e, pro ano que vem, tô abrindo um lugar novo ao lado do Cesinha Scatena (que também é do Encontrão) e do Gui Barrella (dono do Kraut, também foi meu sócio no Neu e no Breve).
Quem acompanha seu trabalho percebe uma assinatura muito clara, um ‘som Dago Donato’. Como você definiria esse seu olhar individual? O que faz uma faixa, nova ou antiga, pular no seu ouvido?
Cada vez mais estou buscando fazer sets sem fronteiras de gêneros, épocas e locais. Sempre gostei de tocar o que ninguém tá tocando. Tenho tocado muito com vinil, o que me tem feito voltar à minha coleção, a tudo o que me influenciou como fã de música e tenho tentado devolver isso em forma de sets em que toco de tudo o que gosto enquanto busco de alguma forma desenvolver uma história com a discotecagem. Na paralela, sigo na descoberta de sons que levo pra pista ou pro meu programa Baile Mutante na Veneno. Finalizando, o que faz uma faixa saltar ao meu ouvido geralmente é quando ela traz algo marcante, que me pega de primeira. Pode ser um beat, um refrão, um riff, um barulho, um break. Se eu escuto e penso “é essa”, vai pro set.
O deepbeep celebra o processo ‘artesanal’. Em um tempo de tanta pressa digital, como você cria espaços (físicos ou mentais) para a escuta atenta e para a descoberta humana?
O Encontrão é muito sobre isso. Nossas festas são longas e as primeiras duas ou três horas são basicamente de audição e papo. A gente curte mostrar os sons uns pros outros, pros amigos, pros amigos dos amigos. Ouvir música, trocar ideia, conhecer gente. Sem pressa, sem pressão de fazer pista. A pista rola, mas vai chegando naturalmente. O bar que devo abrir ano que vem tem proposta semelhante.
Queremos falar sobre o seu processo de garimpo. Onde você encontra as joias que o algoritmo esconde e como funciona essa sua busca?
Hoje em dia o Bandcamp é minha grande fonte de sons novos. Garimpar vinil, seja em sebo, loja ou leilão, também sempre te apresenta novidades antigas. Gosto também de acompanhar sites que cobrem a música atual de diversos lugares do mundo. Gostaria de dizer que tenho um processo organizado pra isso tudo, mas a real é que deixo o caos reinar.
No fim, qual é a conversa ou a sensação mais importante que você, Dago Donato, quer provocar no público que te ouve?
Minha ideia tanto como DJ, quanto como curador e jornalista, sempre foi jogar luz em coisas que acredito que poderiam ou deveriam ser mais conhecidas. Gosto de um estranhamento de certa forma confortável. Daquela levantada de sobrancelha, daquela cara de “que porra é essa?”, da pessoa vir perguntar o que eu tô tocando. Mas, no fim das contas, quero mesmo é fazer minha parte pra que as pessoas voltem pra casa pensando que tiveram um momento legal.
Fotos: Pedro Ivo e Sebastián Cauvet
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