André Fischer

Do rock dos anos 80 à inteligência artificial, ele decodifica a trilha sonora que tem sido a voz e a resistência da cultura LGBTQIA+ no Brasil.

Poucas pessoas personificam a memória e a vanguarda da cultura LGBTQIA+ no Brasil como André Fischer. Como fundador do Festival Mix Brasil, ele criou uma das mais importantes janelas para o cinema e as artes da diversidade, atuando também como um sismógrafo cultural que registra as transformações e urgências da comunidade. Com um passado de DJ e um presente de pesquisador, ele entende a música como um fio condutor de afetos e um elemento central na construção de identidades e pertencimento. Seu olhar, hoje, se volta para o protagonismo trans, as intersecções com a pauta racial e as novas formas de resistência que florescem na cultura, da inteligência artificial aos ballrooms periféricos.

André, o Festival Mix Brasil é um marco na cultura LGBTQIA+ brasileira. Ao longo de tantas edições e da sua experiência como jornalista e ativista cultural, como a música dialoga com as narrativas e a afirmação de identidades no cinema e nas artes que o festival celebra?

Eu já fui DJ por anos e tenho uma ligação muito forte com a música. Desde 2000, o Mix Music faz parte da programação do Mix Brasil e teve a curadoria do saudoso Pomba até 2023, trazendo novíssimos talentos e antecipando tendências. Entendo o poder transformador da música como elemento de construção de identidades e de pertencimento.

No Festival Mix Brasil, a música sempre foi elemento central, funcionando como fio condutor de emoções. Tivemos na abertura shows de Johnny Hooker, Linn da Quebrada e Liniker bem no comecinho de suas carreiras, e uma pluralidade de talentos, do punk rock ao axé, passando pelo eletrônico e MPB. Essas performances mostram que a curadoria musical no Mix não se limita a um gênero: ela reflete a diversidade das narrativas LGBTQIA+, das mais políticas às mais festivas. No cinema queer, as escolhas de canções ou gêneros inteiros evocam memórias coletivas e por vezes sinalizam resistência. Quando um documentário sobre identidades trans incorpora batidas eletrônicas pulsantes, ou um curta sobre relações lésbicas apresenta uma balada afetiva, a música deixa de ser mera ambientação и se torna voz ativa no processo de afirmação.

Na curadoria do Mix Brasil, a trilha sonora de um filme ou a presença de temas musicais já foi um fator decisivo ou particularmente marcante para a seleção ou recepção de uma obra? Algum exemplo que te tocou?

Em várias edições do festival, a trilha sonora ou o uso criativo da música foram determinantes tanto para selecionar filmes quanto para amplificar o impacto do Mix Brasil no público. Pelo menos três exemplos me vêm imediatamente à mente.

No início do festival, em 1997, exibimos um documentário que retratava a cena eletrônica emergente de São Paulo, e o próprio DJ Mau Mau fazia a trilha ao vivo, diretamente na sala de cinema. Aquela experimentação audiovisual criou uma experiência única. A energia da música eletrônica fez com que aquele filme se destacasse não só pela importância histórica do tema, mas pela vivência imersiva que proporcionou ao público.

Ano passado, em 2024, Marcos Serafim apresentou uma sessão especial em que imagens foram projetadas enquanto a trilha sonora era criada ao vivo usando ferramentas de inteligência artificial. Essa experimentação evidenciou como a IA não apenas ajuda na produção musical, mas também altera a forma como quem assiste se conecta ao conteúdo audiovisual, reforçando o caráter de inovação e exploração estética que o Mix sempre busca. E cito também Tatuagem, de 2013, filme cuja trilha sonora, assinada por DJ Dolores e Johnny Hooker, é protagonista e cria uma intensidade afetiva que move o público mesmo depois de sair do cinema.

A música sempre foi uma forma poderosa de expressão e resistência para a comunidade LGBTQIA+. Que artistas ou gêneros musicais você considera emblemáticos nessa trajetória no Brasil, desde os primórdios do movimento até hoje?

Pelo menos desde os anos 1970, a música no Brasil tem funcionado como espaço de celebração e resistência para a comunidade LGBTQIA+. Ney Matogrosso é o maior ícone no questionamento das normas de gênero, e celebramos a resiliência de sua presença artística, ainda tão impressionante aos 84 anos. Caetano Veloso e Gilberto Gil, embora não fossem exatamente LGBTs, tiveram papel fundamental ao defender a liberdade de expressão e dialogar com temas de alteridade, possibilitando um ambiente mais aberto para vozes dissidentes. As Mercenárias, Cazuza, Renato Russo, Claudia Wonder, Serguei e Edy Star no rock nacional. E não tem como não mencionar o funk carioca, que, sem necessariamente assumir o rótulo LGBTQIA+, tratou da sexualidade de maneira mais aberta e afirmativa.

Pensando na evolução do Festival e da própria cultura LGBTQIA+, quais são as “novas batidas” ou as vozes musicais emergentes que você acha que estão definindo o tom para as próximas gerações e que merecem destaque?

Vozes como Assucena, Linn da Quebrada e Liniker têm se consolidado не só pela potência vocal, mas pelo discurso político que carregam, narrando experiências de corpos trans, não binários e periféricos. Essas vozes trouxeram ao festival, e seus sucessos trazem à cena musical brasileira, uma perspectiva de urgência e visibilidade, que ressignifica a cena musical ao celebrar existências marginalizadas e expandir fronteiras de gênero, identidade e expressão artística.

Olhando para o cenário cultural e social LGBTQIA+ no Brasil hoje, quais são os debates, desafios ou mesmo as novas manifestações de alegria e resistência que mais te mobilizam e chamam sua atenção atualmente?

Sem dúvida, o protagonismo trans em espaços culturais e artísticos tem avançado, com aportes incríveis de produções autorais, como espetáculos teatrais e shows musicais protagonizados por artistas trans, que celebram suas histórias, ainda que haja uma crescente resistência política e institucional.

A emergência de pautas que articulam gênero, sexualidade e raça tem sido cada vez mais central. A resistência que se dá em saraus periféricos, ações de memória histórica em comunidades quilombolas e lançamentos de livros e podcasts que ocupam a narrativa de forma crítica.

Mesmo em um contexto de retrocessos políticos, testemunhamos o florescimento de festas e ballrooms nas grandes cidades de todo o país, que são importantes locais de resistência. E, mesmo com toda a loucura que assistimos nos Estados Unidos, aqui e em outras partes do mundo, os programas de diversidade em empresas continuam fazendo um importante trabalho que busca práticas concretas, como inclusão de pessoas trans em processos seletivos, formação antirracista e LGBTQIA+ para equipes e concessão de bolsas para pessoas de comunidades periféricas. Alguns festivais, como o próprio Mix Brasil, adotaram práticas sustentáveis para conjugar a pauta LGBTQIA+ com o compromisso ambiental.

Além do cinema, como você pessoalmente se conecta com a música e descobre novos artistas ou sons que dialogam com as pautas de diversidade e inclusão que você tanto defende?

Ainda mantenho esse instinto de quando era DJ de criar playlists, sobretudo no Spotify, muitas delas focadas em sonoridades que dialogam com diversidade e inclusão, sejam artistas periféricos ou incursões eletrônicas de artistas LGBTQIA+. Frequento festas, eventos com novos talentos e, no período em que dirigi o Centro Cultural da Diversidade, recebia muitos e muitas artistas trans da periferia que estavam bem no começo de carreira e que trabalham pautas de gênero, raça e inclusão em suas músicas. Sigo perfis de artistas que misturam gêneros. E, como parte da minha pesquisa de doutorado, investigo também como a inteligência artificial desenvolve sonoridades emergentes em comunidades historicamente marginalizadas. Tenho uma paixão por descobrir vozes que promovem inclusão através da música.

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