
O prazer, o corpo e a cultura pop se encontram em diálogos sem tabu sobre uma vida sexual mais livre e informada.
Uno Vulpo entende que falar sobre sexo, corpo e prazer é, antes de tudo, falar sobre cultura. No comando do Sento Mesmo, ele utiliza a música, o cinema e as dinâmicas da noite como pontos de partida para conversas essenciais sobre consentimento, redução de danos e educação sexual. Seu trabalho vai da análise de um flerte embalado por Cigarettes After Sex à importância do cuidado nos espaços coletivos, desconstruindo tabus com a clareza de quem sabe que informação é a base para uma vivência mais livre e potente. E é nessa busca por autoconhecimento e respeito que o convidamos a compartilhar uma playlist muito particular: músicas que o inspirem a pensar sobre corpo, prazer e conexões com mais liberdade e consciência. Dê o play, leia a entrevista e celebre o autoconhecimento.
Uno, seu trabalho abre conversas essenciais sobre prazer, corpo e cuidado. Fora desse espaço de diálogo direto, como a música funciona para você? É trilha sonora para explorar o corpo, um jeito de quebrar o gelo ou algo que te conecta com diferentes fases da vida?
Com certeza algo que me conecta com diferentes fases da vida. Cada trilha sonora me lembra de momentos especiais e de diferentes versões de mim e das minhas buscas pessoais. Os artistas conseguem mudar meu humor radicalmente e me colocar no lugar onde preciso estar. Mac DeMarco, por exemplo, tem um lugar muito especial no meu coração, junto com Unknown Mortal Orchestra, pois sempre me deixam mais calmo. Se for para sair, as playlists de Summer EletroHits ou Pet Shop Boys me deixam animado para a noite. E, da mesma forma, se eu ouvir algo ruim ou de que não gosto, meu humor muda na hora, é impressionante.
Mas se você me perguntar sobre o que eu mais ouço, sou muito do ambient e noise no dia a dia. Escutar Brian Eno, Aphex Twin e Bonobo exerce literalmente uma terapia em mim ao longo do dia inteiro.
E para transar eu não consigo ouvir música, me desconcentra, e eu tomo ansiolíticos (já é difícil gozar, risos). Mas escutar Cigarettes After Sex ou Beach House durante um flerte com certeza me permite uma preliminar deliciosa.
Falamos muito sobre consentimento e comunicação clara. Existem músicas ou artistas que, na sua opinião, abordam esses temas de forma potente ou, pelo contrário, reforçam dinâmicas que você busca desconstruir?
Uhm… acho que estamos num momento artístico em que as coisas estão muito atreladas à internet, à influência. Atualmente, todo mundo cria música para viralizar e pensando muito em como as letras irão repercutir nas redes sociais, então acho que todo mundo tem tido muito cuidado nesse ponto. O que já foi escrito e repercutiu em outras épocas, acredito que, na maioria dos casos, tem uma licença poética, pensando no tempo em que foram construídas. Sei lá, Os Normais, por exemplo, a série brasileira, é super problemática, mas para mim não perde o brilho, pois sei separar o que é feito hoje e o que foi feito lá atrás.
Então, eu consigo apreciar Morrissey atualmente e não “passar pano” para ele — prefiro escutar em vinil para não dar dinheiro para ele via streaming (risos). Agora, alguns artistas que ecoam em mim temas como exploração do corpo, o toque ou até mesmo militância seriam Alice Caymmi, que sempre tem uma sensualidade absurda na música e trabalha um relacionamento com o corpo de um jeito único; as Irmãs de Pau, que questionam muito o corpo, o sexo, o comportamento sexual e principalmente o gênero; e tem também a Amanda Mittz, que é uma pessoa que traz reflexão até sobre capacitismo no que escreve.
Pensando em redução de danos, especialmente em festas e espaços de socialização onde a música é central, como o som pode influenciar o comportamento e as escolhas das pessoas em relação ao próprio corpo e ao dos outros? Existe um estilo que favorece mais o cuidado?
Não acredito que tenha um estilo musical que faça esse controle do cuidado. Claro que determinados ambientes, como o do funk ou do rock, têm um campo mais visceral e permitem uma relação com o corpo e até com o comportamento que não aconteceriam numa festinha indie, por exemplo, mas cada um deve, dentro desses espaços, adaptar suas noções de cuidado consigo e com o outro. Colocar a culpa no espaço e na música é tirar a responsabilidade de si mesmo.
A educação sexual ainda é um tabu. A música pop, funk ou outros gêneros populares muitas vezes falam abertamente de sexo. Como você vê essa abordagem? Ajuda a normalizar ou pode, às vezes, criar mais desinformação ou pressão?
Informação a gente procura e se atualiza. Tem umas músicas que realmente falam muita m*rda e não dá para ouvir — pensando que foram feitas na atualidade. Então elas, a depender de quando foram criadas, como foram feitas e quem as fez, têm um papel importante em influenciar as pessoas, e é preciso atenção nesse ponto. E acho que tem como a gente fazer uma música sobre como sentar a bunda de um jeito divertido, não problemático e dentro do propósito dela, que é ferveção mesmo.
Eu particularmente adoro música de ferveção para se jogar e falar putaria, acho que elas têm seu lugar também. Morro de preguiça daquele discurso parnasiano de que tudo tem que ser poesia pura ou soneto.
No seu dia a dia, como você encontra músicas que dialogam com uma visão mais livre, consciente e informada sobre sexo e prazer? É mais pela letra, pela energia, pela representatividade do artista?
Um combo dos três. As Irmãs de Pau são uma dupla que representa muito, que tem uma energia supergostosa e sensual e, com as letras, promove uma desconstrução sobre padrões e tabus; acho importante ouvir. Até em termos de ritmo, elas desconstroem muito do que o povo está acostumado, e muita gente acredita ser só barulho (pessoal mais conservador).
Sade Adu é um clássico também, né? Uma mulher preta falando sobre solidão, sensualidade e uma busca pessoal por prazer. É um gozo ouvir a voz dela e as letras que compõe. Charli XCX traz uma provocação, de um jeito inteligente e perspicaz, sobre o uso de drogas, e consegue fazer isso sem apologia, apenas deixando implícita a mensagem de que as pessoas usam drogas e é isso aí.
Por fim, acho que David Bowie, em suas performances e na forma como sua música consegue atravessar o corpo, exerce, só com a energia, um papel de conscientização e noção do corpo. Meio que dá gás para se mexer, e movimento é corpo, e corpo é sexo, e sexo é prazer.
Fotos: GNT
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