Alexandre Nero

O observador que vê humor na tragédia e se sente um analógico “capengando” no mundo digital. Alexandre Nero fala sobre os paradoxos de sua carreira e a arte como observação.

Alexandre Nero é um dos atores mais conhecidos do Brasil, mas é na música que ele afirma encontrar sua maior realização artística. Essa dualidade é o fio condutor de um artista que enxerga o mundo através de lentes irônicas e de uma profunda capacidade de observação. Para ele, o ator é sempre um “coautor” que dá melodia a um texto, e o verdadeiro sucesso não está nos números, mas em “ter feito exatamente o que você queria”. Seu humor não se limita à comédia; ele o encontra na tragédia distanciada e até no mau humor. Crítico da superficialidade do cenário digital, onde se sente “capengando”, Nero defende a complexidade da vida real, que o algoritmo insiste em ignorar. Nesta conversa, o ator e músico fala sobre seu processo criativo, a diferença entre sucesso e realização e por que a vida, no fundo, é sempre humorada. Leia e ouça a playlist exclusiva!

Nero, no trabalho como ator você se coloca a serviço da visão de um autor e de um diretor. Já na música, você assume um papel criativo diferente, mais autoral. Como é, para você, transitar entre esses dois modos de criação, o de intérprete e o de autor? Uma experiência influencia a outra?
Eu também, como ator, tenho a parte autoral. É que ela não aparece na TV. Na TV é impossível ser muito autoral, porque a equipe é muito gigantesca. Mas no teatro, por exemplo, as coisas que eu faço, que são muito menos vistas, claro, são mais autorais. A gente busca coisas que encaixam melhor no nosso pensamento, na nossa boca. E a função de intérprete também acontece na música. Os discos que eu gravo são como compositor, que é meu lado autoral, mas eu também sou um cantor, cantei em bar durante 20 anos da minha vida como intérprete da música de outros autores. Então, as coisas se misturam.

Uma experiência influencia a outra. Eu acho que o ator, independente de estar falando um texto de outra pessoa, ele sempre é um coautor. Um texto dramatúrgico não tem partitura, então a música, a melodia, o ritmo, quem dá é o ator. Ele faz essa parceria com o autor, por isso é sempre um coautor do texto. As intenções, quem dá é o ator. Não existe um texto de teatro sem ator, senão ele é apenas literatura. E na música, a interpretação também é fundamental. O que seriam das músicas sem um grande intérprete? E isso não quer dizer “cantor”. Bom cantor é aquele que tem o que dizer, tem algo a passar para o seu público.

Tanto na sua música quanto em alguns dos seus personagens, há uma presença forte de ironia e teatralidade. O que te aproxima dessa linguagem? Você vê a performance e o humor como ferramentas para lidar com as complexidades da vida?
Eu lembro sempre do Domingos Oliveira. Quando o conheci e ele foi conhecendo o que eu fazia, sempre falava para mim: “não perca esse seu humor”, que é um humor irônico, sarcástico. E eu tento, mas já perdi bastante. A vida vai dando uma castigada na gente, e a gente vai perdendo um pouco o olhar mais humorado. Mas essa ironia, primeiro que eu tenho esse olhar para a vida porque, de certa forma, ela me defende. Serve, sim, como ferramenta para lidar com a própria vida.

Eu gosto desse tipo de humor quando assisto, de Monty Python ou do humor inglês. E, para mim, a vida é muito humorada. A tragédia, quando distanciada, tem humor. A vida é humorada, porque o mau humor também é humor. Então, eu vejo muita graça também no mau humor. O Marco Aurélio [de Vale Tudo], por exemplo, é um cara muito engraçado dentro do seu mau humor. Tudo o que eu faço, de alguma forma, eu tenho esse olhar. Eu vejo graça nas cenas, no que está sendo feito. Tenho que tomar muito cuidado para não fazer sempre com humor, porque realmente eu acabo visualizando sempre o humor.

Seu álbum mais recente, Quarto, Suítes, Alguns Cômodos e Outros nem Tanto, tem um título muito imagético. Como foi o processo de criação desse trabalho? A ideia nasceu de um conceito, de uma melodia ou de um personagem que começou a ganhar corpo?
Esse álbum nasceu da necessidade de querer falar. Eu tinha gravado meu último disco dez anos antes e pensei: “cansei de compor”. E, de fato, desde aquele disco eu não componho mais nada, não me interesso. Mas me deu vontade, comecei a compor uma música quando estava isolado, gravando Onde Nascem os Fortes, no interior da Paraíba. E ali eu falei: “estou com vontade de mostrar isso para as pessoas”. O álbum demorou uns dois anos para ser gravado, no meio da pandemia. Então, acho que ele tem muito a ver com aquele momento, aquela calmaria, aquela angústia, aquela tristeza e também aquele espaçamento, aquela contemplação.

Eu me senti completamente realizado por aquele disco. Foram nascendo as parcerias, a orquestra, depois a participação do Milton Nascimento, Elza Soares, e para finalizar, minha parceria com o Aldir Blanc. Para mim, eu cheguei no topo da cadeia alimentar da música. Dificilmente vou fazer um disco melhor que esse. Eu sou muito autocrítico, tenho discos meus que odeio, músicas ruins, como vejo coisas como ator que acho horrorosas. Então, me sinto bem à vontade para falar quando acho uma coisa boa, porque não é normal eu fazer isso. E esse disco eu acho que tem grandes acertos.

Você tem uma trajetória sólida na TV e também na música. Como enxerga o desafio de criar arte com profundidade em um cenário digital tão fragmentado, onde a atenção é disputada a cada instante?
Primeiro que eu não vejo nada sólido, eu vejo tudo muito líquido. Minha trajetória, minha obra, tudo. O que é mais sólido para mim é a minha obra musical, apesar de ser, em tese, perante o mundo, um fracasso, porque o mundo entende sucesso como hype, como dinheiro. E sucesso é uma palavra muito particular. Para mim, sucesso é você conseguir ter feito exatamente o que você queria. Então, na música eu consegui fazer exatamente o que eu quis. Como ator, eu ainda não me sinto realizado. Na música, eu me sinto um artista realizado, com as composições, os arranjos, as gravações, os shows e as parcerias que fiz. Como ator, minha estrada é infinitamente menor, apesar de eu ser infinitamente mais conhecido, por causa da televisão.

Então, os algoritmos são muito mais favoráveis a mim na televisão do que na música. Mas eu sou um cara tremendamente inquieto com esses tais algoritmos, sim. Estou sempre tentando fazer com que o que eu faço chegue nas pessoas, e é sempre muito difícil. O cenário digital não está preocupado com profundidade. Ele é só muito raso. Tudo é ágil, fragmentado, rápido, tem que ser feliz, alegre, humorado ou trágico, ou sobre ódio. Não pode ser flat, não pode ser vida real. A vida real é rotina, é chata. O algoritmo não gosta da vida real. Eu não sei lidar com o digital, sou de uma outra época. Fico tropeçando, capengando. Eventualmente apareço lá, mas realmente não sei falar essa linguagem.

Na TV, você já interpretou papéis muito distintos, do verdureiro Vanderlei em A Favorita ao executivo Marco Aurélio no remake de Vale Tudo. O que esse percurso te ensinou sobre o Brasil e sobre as dinâmicas de poder na nossa sociedade?
O trabalho do ator é observação. Eu tive a sorte de ter uma vida muito louca. Fui jogado para um lugar onde convivi com pessoas muito simples, muito humildes, eu mesmo passei fome, perdi meus pais muito cedo e ao mesmo tempo sempre convivi com artistas, que são muito amigos do “rei”. O artista é meio esse cara, você acaba convivendo com celebridades, empresários. Então você observa. A gente trabalha com uma osmose, vai se moldando a quem a gente precisa ser. Você começa a observar o jeito das pessoas falarem, andarem, olharem, como elas se vestem, como se portam. A gente não imita, mas tenta ser o máximo camaleônico possível para adaptar nossa ferramenta, que é o corpo e a mente, para pensar como aquela pessoa pensa.

E esse Brasil… a palavra não é nem Brasil, a palavra é mundo. Esses personagens, o Vanderlei e o Marco Aurélio, existem no mundo inteiro. Essa diferença social, essas personas existem em qualquer lugar. Eu tive a sorte de fazer personagens muito distintos, e também de mostrar muitos sotaques, por ter vivido no Rio, em São Paulo, em Minas, próximo do Nordeste e por ser de Curitiba. Tive diversas possibilidades desse Brasil que você comenta.

Fotos: Priscila Prade

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