
A cartunista que desenha o pensamento para não ter que pensar, transformando a “noia” coletiva em poemas-relâmpago que nos fazem sentir menos sós.
Estela May é uma colecionadora de “pepitas do cotidiano”. Pensamentos soltos, conversas de bar e as próprias ansiedades são a matéria-prima para seus cartuns, que funcionam como “poemas-relâmpago”, condensando as complexidades da vida contemporânea em um traço mínimo e uma frase curta. Em um mundo de performance e perfeição, seu trabalho é um refúgio. Ela celebra a dúvida e a falha, criando um espelho onde nos reconhecemos e nos sentimos um pouco menos sós. Mas seu processo criativo também revela uma relação íntima com a própria mente. Para ela, desenhar é uma forma de organizar o pensamento, e a música, uma ferramenta para silenciá-lo. “Não posso parar”, confessa. “Se paro, eu penso. Se penso, eu choro”. Para nos guiar, ela compartilha a “playlist para desenhar o pensamento”, uma trilha sonora que reflete seu universo, onde o pós-punk do The Velvet Underground encontra a melancolia de Caetano Veloso e a vanguarda de Brian Eno. Dê o play!
Seus cartuns são crônicas precisas e sensíveis das ansiedades da vida contemporânea. De onde vêm suas ideias? É um processo de observar o seu próprio grilo interno, as conversas ao redor, ou uma mistura dos dois?
Mistura dos dois. Conversas largadas num bar, pensamentos antes de dormir… O truque é saber o que vale a pena anotar, o que é pura asneira e o que, de repente, vira uma pequena genialidade. A linha é bem tênue. Minhas notas de celular são um compêndio absurdo de frases que já me pareceram faíscas. Depois, algumas se revelam baboseiras completas; outras, espantosamente sensatas. Por isso, é sempre bom ter caneta à mão. Eu adoro usar as costas da mão como caderno improvisado. As tiras acabaram virando isso, um diário de pensamentos e pepitas do cotidiano.
Seu traço é muito particular, minimalista, mas cheio de expressão. Como você chegou nesse estilo? E qual é o poder de um desenho simples e de uma frase curta para comunicar uma ideia complexa, algo que talvez um texto longo não conseguiria?
Sempre fui sucinta — até nas provas, minhas respostas eram diretas ao ponto. Desenhar começou como passatempo, depois virou obsessão: transformar pensamento em imagem. Quando percebi que podia juntar palavra e traço, meu mundo explodiu. Um desenho mínimo e uma frase curta têm o poder de condensar como um poema relâmpago. Às vezes, três linhas dizem mais que vinte parágrafos.
Os algoritmos nos pressionam a performar uma vida perfeita. Seu trabalho faz o oposto, celebrando a dúvida e o esquisito. Como é usar uma plataforma como o Instagram, que valoriza tanto a perfeição, para falar justamente sobre as nossas imperfeições?
É cansativo. Está tudo chato demais, pensado demais. Eu tento ser o mais eu possível e me divertir fazendo isso, mas, na maior parte do tempo, é um saco. Hoje me vejo entre duas escolhas: ou voltamos a postar bobagens, coisas engraçadas, incompreensíveis, misteriosas — ou largamos de vez.
Você cresceu em um ambiente de imensa efervescência criativa. Como essa vivência desde cedo com o texto, o humor e a arte influenciou a sua escolha pelo cartum como principal forma de expressão?
Crescer em um ambiente tão criativo fez a gente querer brincar de inventar. Não sei por que me instalei justamente no desenho e na escrita, mas era o que fazia mais sentido: caneta e papel, imagem e palavra. Ao mesmo tempo, sou absolutamente obcecada por som. Escuto música sem parar. Não, não posso parar. Se paro, eu penso. Se penso, eu choro.

Muitas pessoas se sentem profundamente “vistas” pelos seus cartuns, como se você estivesse traduzindo um sentimento que elas não sabiam nomear. É essa a sua busca? Criar um espelho para que a gente se sinta um pouco menos só em nossas “noias” e ansiedades?
Acho que sim. É sempre bom não se sentir sozinho. Existe algo engraçado e triste em se reconhecer num desenho que ilumina nossas fraquezas, o ridículo, o sutil. Como somos volúveis! Eu tento traduzir as maluquices de dentro e observar as do lado de fora — acumular e transformar em algo que estimule a imaginação, que faça viver ser um pouco mais legal. No fim, é isso: sair saltitando pelo vasto universo incompreensível, colecionando pepitas, ouvindo música boa.
Acompanhe o trabalho de Estela May
Instagram (Estela May)
Cartuns diários (Uol)