
Para o criador de cenas, a cidade é feita de identidade, não de algoritmos, e a única responsabilidade de um empreendedor cultural no Brasil é, simplesmente, sobreviver.
Facundo Guerra não abre negócios, ele exorciza fantasmas. Para o empreendedor cultural argentino que ajudou a moldar a noite de São Paulo na última década, cada novo projeto é uma tentativa de materializar uma ideia que o assombra e de responder a uma pergunta impossível. O que é ser paulistano? Ele atua como um arqueólogo urbano, “conversando” com espaços abandonados para resgatar a memória de uma cidade que ele define como “desmemoriada”. Seu trabalho é um ato de resistência polifônico contra a lógica hegemônica dos algoritmos e uma batalha de Sísifo pela sobrevivência em um mercado “quase suicida”. Nesta conversa, Facundo fala sobre identidade, memória e pragmatismo. Fiel ao seu método, em vez de montar uma playlist curada, ele compartilhou um retrato bruto e sem filtros do seu radar atual, uma lista com as últimas músicas que salvou em sua playlist pessoal.
Facundo, você não abre apenas bares ou casas de show, você cria cenas e ajuda a ressignificar partes da cidade. O que te move como empreendedor? É a oportunidade de negócio, a paixão por criar espaços de encontro, ou um desejo de intervir e transformar a cidade?
Eu acho que um pouco de cada coisa que você citou. Às vezes eu tenho uma ideia e quero materializá-la para ver se ela faz sentido, mais além do que qualquer coisa. Tenho vontade de exorcizar esses fantasmas que de vez em quando tomam conta de mim. Eu já tive projetos que ficaram comigo e nunca foram executados, e sou assombrado por eles até hoje. Então tem, sim, em primeiro lugar, essa necessidade de materialização — obviamente, desde que ela seja sustentável do ponto de vista financeiro —, mas, no segundo plano, essa relação quase antropomórfica que eu tenho com alguns espaços que foram esquecidos em São Paulo. Como argentino, eu me pergunto o tempo inteiro o que é ser paulistano, e é lógico que essa pergunta é irrespondível, até porque não existe uma São Paulo, mas várias. Cada lugar que eu abro é uma tentativa muito subjetiva de responder a essa pergunta. Nós, paulistanos, somos desmemoriados. Sem passado, não existe identidade. Sem identidade, não existe conexão, não existe cidade.
Muitos dos seus projetos, como o Cine Joia, passando pelo Love e chegando ao Formosa HiFi, conversam com a história do lugar. Qual a importância da memória e da arquitetura de um espaço na construção da identidade de um novo projeto? A alma do lugar já dita a alma da festa?
Ele é fundamental e está no centro do projeto. Foram poucos os lugares que abri que não dialogavam com seu uso pregresso. É sempre um diálogo com o passado e uma projeção no futuro. Arquitetura é envelope de gente e, no limite, sem gente dentro não faz qualquer sentido, aí vira escultura. Então os lugares abandonados falam de uma São Paulo que foi esquecida, falam de uma memória, falam da construção de uma identidade que foi interrompida. Escavar esse passado e criar um diálogo com a contemporaneidade é o que cada um desses projetos tenta fazer, com maior ou menor sucesso. Eu faço uma “mesa branca” com todos os lugares onde entro. Adoro lugares abandonados, fico vendo as frações da manifestação dos paulistanos do passado naquelas paredes. Apesar de não ser nada espiritualizado, de alguma forma esses lugares falam comigo. Parece coisa de gente doida, mas eu realmente tenho essa coisa de conversar com esses espaços de uma maneira muito íntima, quase que perguntando a eles o que eu posso fazer para retornarem à vida. Cada espaço desses é uma conexão entre gerações de paulistanos, e eu me orgulho muito de poder fazer isso com o trabalho.
A curadoria feita por algoritmos é uma grande inquietação. Seu trabalho é o oposto: criar um clima através da curadoria humana. Em uma era em que as pessoas muitas vezes descobrem o que fazer através de “reviews” e “hypes” digitais, qual é o segredo para construir um lugar com uma identidade tão forte que ele se torna seu próprio algoritmo de atração?
Eu acho que os lugares não são algorítmicos de nenhuma maneira. Por trás de um algoritmo existe uma visão de mundo, normalmente hegemônica e imperialista. Apesar da minha vida ser cruzada por algoritmos como a de qualquer pessoa que viva nos tempos atuais, eu tento fazer no lugar algo que seja a expressão de um humano, de diversos tipos de humanos e que permita que as pessoas se conectem através desses humanos. Tento fazer o lugar ser o mais polifônico possível. Obviamente que ele não foge desse vapor do algoritmo, até porque ele é o ar que a gente respira. É uma tarefa de Sísifo, mas acho que vale a pena comprar essa briga, mesmo sabendo que a derrota é certa.
A música é a espinha dorsal de quase todos os seus projetos. Como funciona a sua relação com a curadoria musical? Você se envolve diretamente na escolha dos DJs e das bandas? E como você define a trilha sonora perfeita que vai traduzir a identidade de um lugar?
Eu me envolvo, sim, apesar de ter gente muito melhor do que eu e com um conhecimento musical muito mais profundo do que o meu para fazer essa curadoria. Não se trata de meu gosto ser projetado para as pessoas que frequentam os meus espaços. Eu há muito tempo me livrei do narcisismo do curador, que acredita que seu gosto é esteticamente e moralmente superior aos demais. Eu não faço julgamento de valor sobre qualquer forma de expressão humana, não acho que funk é inferior à música clássica e não posso impor o meu gosto nos palcos que eu controlo. Quanto mais pessoas, com mais gostos diversos e mais sensibilidade financeira (porque sem retorno financeiro o lugar não para em pé, já que nunca conseguimos levantar nenhum centavo em incentivo para nenhum espaço), tanto melhor. A trilha sonora normalmente é a junção de vários gostos musicais que têm algo em comum. Nem eu sei definir o que é esse algo. São afinidades tanto estéticas quanto afetivas, um amontoado de coisas de pessoas que se gostam e que, com sorte, fará sentido para outras pessoas.
Depois de tantos anos na linha de frente, transformando a noite e a cultura de São Paulo, o que você acredita ser o papel de um empreendedor cultural hoje? É apenas criar negócios de sucesso, ou é também ter uma responsabilidade em fomentar a diversidade e a alma de uma cidade?
Eu acho que é um pouco romântico demais pensar em qualquer responsabilidade além de manter o negócio vivo. Eu respeito muitíssimo qualquer empreendedor cultural. Não me importa em qual campo ele esteja atuando. Ser empreendedor no Brasil enlouquece qualquer um; trabalhar com cultura, então, tem algo de quase suicida. Eu gostaria de poder te dizer que fomentar a diversidade e a alma de uma cidade deveria ser o propósito de qualquer empreendedor cultural, mas, depois de 20 anos nesse mercado, arrisco dizer que a única obrigação que ele tem é sobreviver.
Fotos: Alex Batista
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