
O artista que cria fissuras na percepção e encontra sua matéria-prima na ausência, nos fantasmas da história e no caos da cidade.
O artista visual Von Ha opera como um arqueólogo do contemporâneo. Seu trabalho não busca a beleza na superfície, mas investiga as ausências, os fantasmas e as lacunas da história, transformando o que foi silenciado ou esquecido em uma potente linguagem de geometria e cor. Ele enxerga as cidades como um palimpsesto a ser decifrado e a internet como um campo de ficções a serem desarmadas. Em um tempo que exige velocidade e impacto, sua obra é um convite à demora e à fricção. Ele constrói imagens que parecem familiares, mas que falham em se encaixar em narrativas conhecidas, forçando o espectador a um pequeno “colapso da percepção”. Nesta conversa, Von Ha fala sobre a arte como um espelho do inexplicável e como a tecnologia pode, paradoxalmente, nos reconectar com nosso “museu imaginário” particular. Como um exercício criativo, ele ainda compartilha a trilha sonora que poderia embalar suas obras, em uma playlist que traduz para a música a mesma atmosfera de suas criações visuais. Ouça!
Sua obra parece traduzir conceitos como ritmo, silêncio e partituras para a linguagem visual. Como funciona, na prática, esse seu processo de perceber um espaço ou uma ideia e transformá-la em geometria e cor?
Existe um permanente estado de vigília. Um modo de escutar o mundo antes de começar um trabalho. Às vezes, o que me interessa é o que não aconteceu, entre as lacunas históricas que ainda permanecem vazias. São aquelas imagens que quase se formaram. Meu trabalho se organiza a partir desses fantasmas, dessas ausências estruturantes. É uma tentativa de fixar o que escapa. Nas séries Double Crossing e T.L., por exemplo, eu manipulo imagens históricas através de duplos. São operações visuais que utilizam as cópias para ressignificar o passado e refletir o presente.
O que na estrutura de um prédio ou no caos de uma cidade chama sua atenção? Como você abstrai o concreto do nosso dia a dia para encontrar a poesia e o ritmo que existem nele?
Vejo as cidades como um palimpsesto: há sempre uma camada por baixo da outra. Eu não me interesso pelo que está na superfície da paisagem urbana, mas pelo que está deslocado, silenciado ou oculto. Pois as cidades são o lugar da convivência, e uma cidade como São Paulo muitas vezes nega isso a determinados grupos. Quando olho pra uma fachada ou uma parede pichada, estou buscando o código que organiza aquele espaço, o ritmo interno daquilo que já foi repetido mil vezes e, por isso mesmo, se tornou invisível no dia a dia. Meu trabalho funciona como uma arqueologia contemporânea nesse sentido. Há vestígios de tempo nos muros, nas marcas através de pichações, até mesmo em áreas gentrificadas. Eu tento reposicionar esses fragmentos quando me aproprio desses elementos. E, ao fazer isso, desloco o caos da cidade para o campo da arte.
Vivemos um tempo de excesso de imagens, com algoritmos que premiam o que é mais chamativo e instantâneo. Sua arte, ao contrário, muitas vezes convida à pausa. Como é o seu diálogo com esse mundo digital? Ele é uma ferramenta, uma distração ou apenas um ruído a ser filtrado?
O digital é um campo paradoxal: ele pode ser meio, ruído ou armadilha. O que me interessa, no entanto, é como as imagens e ideias circulam na rede. Em projetos como TokyoShow, eu explorei a lógica de circulação das imagens e o seu poder de ficcionalização. Criei trailers de filmes que não existem. Exibi esses trailers em cinemas reais, com atores reais, pôsteres reais. A imagem, ali, se torna armadilha, pois ela simula a realidade. E quando o espectador se dá conta de que não há filme, já é tarde. Ele já foi capturado. Em 2010, quando lancei esse projeto (Heist Films Entertainment), eu estava muito interessado em como as ficções criam também realidades. Anos mais tarde, isso foi levado ao extremo com as fake news, que moldaram essa nova realidade para sempre.
Essa é a mesma estratégia que proponho no trabalho visual: construir imagens que parecem conhecidas, mas que não se encaixam em nenhuma narrativa fixa. Imagens que não entregam tudo. Que atrasam o tempo de resposta. Num mundo que exige velocidade, oferecer demora pode ser um gesto radical. Eu crio zonas de fricção, não de conforto. E talvez seja isso o que resta à arte hoje: criar intervalos de tempo onde tudo quer urgência.
Como nasce uma nova série de trabalhos? Começa com uma pesquisa teórica, um material que te intriga, uma cor específica, ou simplesmente com o ato de traçar a primeira linha no papel em branco e ver para onde ela te leva?
Geralmente nasce de uma inquietação. Pode vir de uma imagem histórica ou de algo banal que vi na internet. Mas também pode nascer de um ruído, algo que me incomoda e que eu não sei nomear. O trabalho é a tentativa de escavar esse incômodo. Minhas séries não são coleções. Elas são narrativas interrompidas. Em Heist Films Entertainment, por exemplo, o ponto de partida foi a saturação de narrativas ficcionais: trailers, teasers, slogans — tudo o que promete um filme que nunca existirá. Ali, o gesto artístico não é o de “inventar” algo novo, mas o de forçar o colapso do que já está saturado. Às vezes, o primeiro risco no papel é só um pretexto. O verdadeiro início é quando o trabalho começa a me desafiar de volta. Quando ele se rebela. Quando exige outras estratégias. É nesse momento que ele deixa de ser uma ideia só minha e passa a ser uma linguagem em construção.
Diante de uma obra sua, seja em uma galeria ou em um mural na cidade, qual é a sensação ou o estado de espírito que você espera despertar no observador? É um convite à calma, à reflexão, ou a uma nova forma de perceber o espaço ao redor?
Eu não espero calmaria. Nem impacto. Eu espero fissura. Um pequeno colapso da percepção. As pessoas me dizem: “isso me parece familiar, mas não sei de onde é.” É exatamente esse o ponto que me interessa: quando o reconhecimento falha. Quando a memória vacila. Quando o olhar desacelera para tentar entender o que está acontecendo. Meu trabalho não entrega sentido, ele embaralha códigos. É como se o espectador precisasse se recompor diante da obra. E, ao fazer isso, ele talvez se recomponha diante de si mesmo. A arte, pra mim, não serve para explicar nada. Ela serve para espelhar o inexplicável que somos, tudo que tentamos evitar.
Von Ha, seu trabalho como embaixador da Samsung tem mostrado como a tecnologia pode se integrar de forma sensível ao universo da arte e ao cotidiano. Pensando na série ‘The Frame e o Museu Imaginário’ e também nas inovações da marca para a casa, que história você acha que a Samsung está contando sobre viver em casa hoje? E que oportunidades você enxerga nessa união entre arte e tecnologia para transformar, de verdade, a maneira como a gente se relaciona com os espaços e com a cultura no dia a dia?
Acho que a Samsung está contando uma história sobre a vida. Quando uma TV como a The Frame exibe, com precisão quase museológica, uma obra icônica como os Girassóis de Van Gogh, a marca está falando de algo muito humano: essa vontade de fixar imagens e de permanecer. Algo que André Malraux já chamava de “museu imaginário”, que é essa coleção íntima e afetiva de imagens que carregamos dentro de nós. A casa, então, deixa de ser apenas um lugar funcional. Ela passa a ser uma espécie de galeria viva, um espaço onde a vida se edita, se expõe e se reinventa o tempo todo. Quando pensamos na série The Frame e o Museu Imaginário, a ideia nunca foi só “trazer” a história da arte para dentro de casa, mas permitir que o espectador reorganize o seu próprio imaginário através dessa tecnologia. Cada imagem escolhida se torna uma espécie de portal: ele suspende o óbvio, quebra o automatismo do dia a dia e abre espaço para uma experiência de fruição.